Desde há trinta anos, quando a Igreja Universal do Reino de Deus chegou a Portugal, que a vida de um evangélico neste país é ter de explicar que não faz parte de uma seita que quer roubar dinheiro às pessoas. Durante muito tempo também pratiquei essa modalidade de tentar provar aos outros que a minha religião é respeitável, mas desisti. E desisti porque não acredito numa fé que é validada pela multidão. Não sinto prazer se o povo não compreende aquilo em que eu creio, mas também não sinto sofrimento.

Também por isso, tento uma espécie de psicologia invertida diante dos constantes equívocos quando o assunto é eu ser um pastor evangélico: se suspeitam, surfo ainda mais na onda; se têm medo, assusto ainda mais um bocadinho; se desprezam, faço por ignorar. No fundo, aplico as palavras de Jesus quando ensinava por parábolas: “para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam”. Por vezes é importante devolver às pessoas o que elas já nos dão.

Creio que o assunto que mais deixa as pessoas em estado de cautela diante dos evangélicos é o da prática do dízimo. Não me interessa a contradição óbvia de a tradição religiosa dominante em Portugal também acreditar desde sempre nele: interessa-me antes vestir a pele do lobo, já que o fato me foi preparado. Para mim o verdadeiro escândalo é conceber uma igreja respeitada por não querer entrar no bolso do crente.

É a igreja que não me quer roubar que não me merece respeito. Há um nome para a ausência de interesse em extrair o que os outros têm de valioso: indiferença. É diante das pessoas que não têm valor para mim que não tenho interesse em extrair nada delas. Pessoas não roubáveis são pessoas que representam zero. E o pior que pode acontecer entre pessoas é haver aquelas que zero são aos olhos dos outros.

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Vendo as coisas desta perspectiva até um ladrão tem perdão. Um ladrão quando rouba apropria-se injustamente daquilo que não lhe pertence, é certo. Mas, pelo menos, o ladrão comportou-se erradamente a partir de um encontro correcto com o valor que uma coisa tem. O ladrão deve ser castigado pelo roubo mas não pelo valor que encontrou em algo. Há no ladrão, pelo menos, a interessante não-ausência de critério.

É a pessoa incapaz de compreender a tentação do ladrão que realmente assusta. Quem nunca quis roubar nada é uma criatura aterrorizadora, de completa indiferença aos tesouros existentes. Pessoas sem instinto de roubo são monstros, pessoas em paz diante do nada. E a tragédia é que hoje verdadeiros niilistas passam por santos. Quando louvamos um cidadão que nunca combateu a sedução de ter o que não lhe pertence, canonizamos a pior forma de adoradores do abismo.

Sei que qualquer forma de religião sem sensibilidade aos tesouros deste mundo não é a de Deus mas do Diabo. Igrejas incorruptíveis são as sinagogas de Satanás. É curioso que pessoas cheias de desejos critiquem cristãos que, volta e meia, escorregam num. Boa parte do povo que vive a ter sexo quando quer, boa parte do povo que vive para fazer dinheiro, boa parte do povo que vive para mandar nos outros escandaliza-se quando num crente um centímetro do mesmo fenómeno ocorre.

Quando Jesus voltar o prémio não será o despojamento deste mundo dos seus tesouros, mas o uso deles para a obra mais chã. Dou um exemplo: na Nova Jerusalém as ruas serão asfaltadas a ouro. O significado disto não é escasso: o cristão não vive para se tornar indiferente ao que tem valor, mas para afinar o seu critério segundo o maior de todos que é Deus. Como o C. S. Lewis tão bem compreendeu, os cristãos são os verdadeiros materialistas.

Acho preferível escrever estas coisas assim, de modo selvagem. Fingir que valorizo a hipocrisia óbvia de quem critica os evangélicos que supostamente querem roubar dinheiro às pessoas só me faz ter mais dela. Ainda estou por conhecer um crítico das igrejas que alegadamente roubam dinheiro às pessoas que o entregue a outro tipo de assembleia mais nobre. A minha teoria é mais freudiana: as igrejas que são acusadas de roubar dinheiro às pessoas são, na realidade, invejadas por quem ainda não teve coragem de entrar nelas.

Entrar numa igreja que alegadamente me quer roubar é a possibilidade de integrar um lugar onde faço diferença, onde chego com algo que interessa, ainda que seja apenas o dinheiro. As igrejas que não me querem roubar nada são lugares onde estar lá ou não é quase indiferente. A falta de necessidade de atrair pessoas que têm as igrejas que não querem roubar sempre foi para mim a maior certeza do seu real perigo. Onde não posso ser roubado, muito obrigado, mas não entro.