Lima, Peru: Vargas Llosa, García Márquez e os novos desafios da comunicação corporativa
Foto de Anton Lukin na Unsplash

Lima, Peru: Vargas Llosa, García Márquez e os novos desafios da comunicação corporativa

No final de maio, estive em Lima, Peru, para a assembleia geral da Global Alliance for Public Relations and Communication Management. Meu papel como chair para América Latina da Global Alliance é criar e fortalecer uma rede de comunicadores latinos, alinhada com as características e as necessidades únicas de nossa região. Em viagens a trabalho meu tempo em geral é curto, porém sempre procuro aproveitar a oportunidade para conhecer ao máximo o país e sua cultura. E isso me é ainda mais importante quando estou em um país latino-americano, pois, infelizmente, conhecemos surpreendentemente pouco nossos vizinhos.

Acho difícil que alguém visite Lima e não se sinta tentado a comprar um livro de Mario Vargas Llosa, por mais que já tenha um (em meus tempos de Editora Abril, há mais de dez anos, tive inclusive a oportunidade de conversar com o autor). Antes que a culinária peruana e seus chefs ganhassem destaque mundial (merecidamente), Vargas Llosa era uma das principais expressões culturais do país. Ele escreveu romances, ensaios, peças de teatro, transitou por diversos espectros da política e ajudou a moldar a percepção da literatura latino-americana no mundo. À sua maneira, ele consolidou em sua obra parte de uma identidade latino-americana. Nessa minha última passagem pela capital do Peru, um livro diferente chamou minha atenção. “Duas Solidões - Um diálogo sobre o romance na América Latina” reproduz um debate, ou quase uma entrevista, entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Nacional de Engenharia, em Lima, realizada nos dias 5 e 7 de setembro de 1967.

Em conversa com Mario Vargas Llosa, junto com Edward Pimenta (à esquerda) e Ricardo Setti (de costas)

Sempre achei a literatura um ponto de convergência interessantíssimo entre os muitos países que compõem a América Latina, um espaço físico, político, histórico, linguístico e social (e, por que não, espiritual) extremamente rico. O livro reproduz uma conversa entre duas grandes personalidades literárias sobre a América Latina como um bloco do ponto de vista da língua, da cultura e da literatura. Embora Vargas Llosa e García Márquez tenham se distanciado politicamente a partir de 1971, e rompido definitivamente em 1976, naquele momento ainda eram amigos devotados.

Na edição brasileira, lançada pela editora Record com tradução de Eric Nepomuceno, o prefácio do tradutor nos lembra que na época a América Latina “vivia sufocada por ditaduras militares de maior ou menor ferocidade, mas todas brutais” (ainda que, como lembra Nepomuceno, àquela altura o Peru fosse uma exceção, liderado pelo presidente Fernando Belaúnde Terry, eleito pela população). Embora hoje vivamos em um contexto diferente, do ponto de vista político e econômico, acredito que a conversa entre os dois escritores ainda tem muito o que nos ensinar, inclusive sobre a prática do diálogo. Um Vargas Llosa consagrado recebia em Lima Garcia Márquez, que acabara de lançar “Cem anos de solidão” (ainda inédito no Peru) e galgava rapidamente os degraus da fama. O peruano transforma o que seria um debate em uma entrevista, dando todo o destaque ao visitante. O espaço que o anfitrião oferece ao convidado (até então menos conhecido) chama a atenção para a importância da escuta – ali está um escritor famoso, várias vezes premiado, apresentando à plateia um recém-chegado e ouvindo-o atentamente. Atualmente, tenho a impressão de que, em muitos casos, há uma pressa para falar, para se posicionar, que acaba atropelando o primeiro passo de escutar o outro, de prestar atenção a nosso entorno para então refletir sobre o que queremos – e podemos – comunicar.

García Márquez fala longamente sobre o que seria o “realismo fantástico” ao comentar a realidade latino-americana, um espaço em que “tudo é possível, tudo é real”, mas que “todos nós começamos a dar uma série de explicações racionais que falseiam a realidade latino-americana” – novamente observo aqui a pressa em querer explicar tudo, sem considerar as muitas realidades a nosso redor. Em uma passagem, ao falar sobre a violência infligida pela companhia bananeira à Macondo de “Cem anos de solidão”, o escritor explica que recupera “a mais miserável realidade cotidiana”, retratando (de maneira ora leve, ora dramática) uma Colômbia assolada por desigualdade e violência – traços presentes, em maior ou menor grau, na história do Brasil e de outros países da América Latina.

Essa forma de tratar questões dolorosas reflete o cuidado de abordar não só a violência, mas as marcas que ela deixa. Como comunicadores, parte de nosso papel é justamente tratar de temas difíceis e dar a eles seu papel na construção da memória (de organizações e da sociedade). E ao longo da conversa, compreendemos como a literatura também tem seu papel na construção dessa memória e da própria identidade de um povo. Quando os dois escritores comentam sobre o boom de autores latinos vivido na região nos anos de 1960, García Márquez explica que não se trata de um boom de autores necessariamente, mas de leitores, que passam a se identificar com autores latinos e suas obras – que, segundo o colombiano, devem se fundar sobre uma realidade concreta. E é justamente essa realidade conturbada vivida pelo(s) continente(s) que, segundo Vargas Llosa, impulsiona a literatura da região, já que, para o peruano, a estabilidade estimula muito menos os escritores.

Hoje, nos meios da Comunicação Corporativa, fala-se muito na intencionalidade. E, da mesma forma que essa é uma questão para as relações públicas, também o é para a literatura. Para García Márquez, quanto mais sincero é o autor, mais impacto e mais poder de comunicação terá aquele livro. Será que não seria justamente essa sinceridade, essa intencionalidade, o motivo do boom dos autores latinos? Hoje, da mesma forma, acho possível identificarmos um movimento semelhante nos posicionamentos de marcas e organizações. A postura transparente e aberta sem dúvida pode gerar uma repercussão maior (e mais favorável) do que o posicionamento pro forma adotado em alguns casos (felizmente, cada vez mais raros).

Ainda que a América Latina viva uma divisão entre os países de colonização espanhola e o Brasil, de colonização portuguesa, não podemos deixar de perceber (ou sentir) uma identidade cultural comum. Em um trecho, Vargas Llosa questiona García Márquez sobre a temática da solidão, tão recorrente nos livros do colombiano. Enquanto García Márquez explica sua crença na solidão como parte essencial da natureza humana, seu anfitrião peruano afirma que a solidão era a “característica do homem latino-americano, pois estava representando a profunda alienação do homem latino americano (...) condenado a uma espécie de desencontro com a realidade”. Esse alheamento de que Vargas Llosa fala também foi objeto de estudo de um brasileiro – seria a raiz da cordialidade explorada por Sérgio Buarque de Hollanda em seu “Raízes do Brasil”, o “disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções”.

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