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Carros: fim do motor a combustão convencional aproxima-se

Mobilidade

Especialistas

Viatura a ser atestada com biocombustível
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Muitos consumidores ficaram apreensivos com a aprovação de um regulamento europeu a determinar, a partir de 2035, o fim da venda de automóveis ligeiros novos movidos com motor de combustão convencional. A alternativa, para já, são os veículos elétricos, que, neste momento, são mais caros do que alguns modelos a combustão, e nem todos os cidadãos têm possibilidade de os carregar em casa: a solução que fica mais em conta. Contudo, após reservas da Alemanha, a Comissão Europeia acabou por aprovar uma versão do regulamento que inclui a possibilidade de se fabricar e vender viaturas com motores de combustão alimentados com combustíveis sintéticos, que têm emissões neutras de dióxido de carbono (CO2).

Na verdade, há que encontrar um equilíbrio entre o que contribui para a diminuição das emissões e o que é viável para o consumidor. Neste artigo, além de se analisar as razões que levaram àquela decisão, verificou-se as consequências de não se cumprirem os prazos definidos para a entrada em vigor deste regulamento.

Porquê o fim dos motores de combustão?

As alterações climáticas começaram a ter a atenção da comunidade internacional em 1988, na sequência de um alerta dos cientistas. Após vários anos de negociações, em 2016, entrou em vigor o Acordo de Paris, que teve como objetivo a neutralidade carbónica, para reduzir o aquecimento global. Para tal, entre várias medidas, os governos acordaram em manter o aumento da temperatura média mundial abaixo dos 2°C, face aos níveis pré-industriais, e em fazer o possível para limitar o aumento a 1,5°C.

Na sequência deste acordo, em 2019, foi publicado o Pacto Ecológico Europeu (em inglês, Green Deal), que implicou a adoção de um conjunto de propostas legislativas com o objetivo de tornar as políticas da União Europeia (UE), em matéria de clima, energia, transportes e fiscalidade, adequadas para alcançar uma redução das emissões de gases com efeito de estufa de, pelo menos, 55%, até 2030, face às que se verificavam em 1990. O objetivo final é atingir a neutralidade carbónica em 2050.

O setor dos transportes é o que mais contribui para a acumulação dos gases com efeito de estufa. Só em 2019, as emissões dos transportes representavam cerca de um quarto do total das emissões de gases na UE, sendo que perto de 72% provinham dos transportes rodoviários, valor que tem aumentado nos últimos anos.

O sistema de transportes é fundamental para consumidores, empresas europeias e cadeias de abastecimento mundiais. Mas, ao mesmo tempo, tem custos para a sociedade: como as emissões de gases com efeito de estufa e de poluentes atmosféricos, o ruído, os acidentes rodoviários e os congestionamentos. Daí não ser de estranhar que a mobilidade e as tecnologias dos veículos, em particular dos veículos automóveis, tenham de sofrer grandes alterações num futuro próximo.

A utilidade dos combustíveis sintéticos

No Pacto Ecológico Europeu são estabelecidas metas mais ambiciosas para a redução das emissões de CO2 dos veículos: 55% de redução nos automóveis e 50% nos comerciais ligeiros, até 2030, e emissões nulas nos automóveis novos, até 2035. Foi na sequência deste pacto que a Comissão Europeia apresentou, em 2022, um regulamento a impor o fim da comercialização de veículos novos com emissões de CO2, a partir de 1 de janeiro de 2035. Em fevereiro de 2023, o Parlamento Europeu aprovou esta proposta. Mas, antes da retificação final, a Alemanha, com o apoio dos fabricantes de automóveis, ameaçou vetar se não constasse uma exceção para os combustíveis sintéticos. Em março de 2023, foi finalmente aprovado o regulamento, mas com a possibilidade de automóveis com motores de combustão alimentados apenas por combustíveis sintéticos – considerados neutros em CO2 – continuarem a ser vendidos.

De facto, tem havido algum investimento em biocombustíveis e combustíveis sintéticos, que podem permitir que os veículos com motor de combustão passem a ser neutros ao nível de emissões, mesmo sem qualquer mudança da tecnologia de propulsão e sem limites físicos à sua incorporação nos veículos. Trata-se, contudo, de tecnologias ainda pouco maduras. Mas convém manter o investimento, pois estas poderão ser uma alternativa para a descarbonização dos motores de combustão dos veículos europeus em circulação após 2035. Não pode haver muitos atrasos.

O regulamento aprovado será reavaliado e os objetivos ajustados consoante a evolução e a adaptação que o mercado apresentar face ao desafio. Para perceber as consequências e o impacto nas emissões, a DECO PROTeste avaliou vários cenários que incluem as diferentes soluções e as consequências no caso de atraso na adoção das medidas.

Com base nos resultados, verifica-se que, se existir um atraso de cinco ou dez anos na adoção da mobilidade carbono zero – no estudo, considerou-se ser a mobilidade elétrica –, mesmo assim, é possível atingir a neutralidade carbónica em 2050, com uma redução superior a 90% das emissões de CO2. Contudo, há sempre a possibilidade de os atrasos serem superiores e correr-se o risco de não se conseguirem adotar soluções alternativas com melhor desempenho ambiental. Caso a proibição da venda de veículos novos com motor de combustão convencional só comece em 2050 (atraso de 15 anos), não se conseguirá descarbonizar o setor dos transportes rodoviários, pois a redução das emissões de CO2 rondaria os 82 por cento. Isto, mesmo com a promoção de medidas de gestão da mobilidade, como um maior uso dos transportes públicos e da mobilidade partilhada.

Claro que também há custos e, ao ser antecipada a transição para a mobilidade elétrica, os encargos serão mais elevados no curto prazo, mas inferiores no longo prazo. O acréscimo do preço de aquisição dos veículos acaba por ser compensado com a maior eficiência energética devido ao uso mais prolongado de veículos elétricos e de hidrogénio, que poderão surgir numa segunda fase. A transição mais suave tem menos custos para os consumidores a curto e a médio prazo, mas maiores para a sociedade. Por esta razão, para acelerar a transição, será necessário ter em consideração a possibilidade de introdução de incentivos à aquisição de veículos elétricos, de modo a ajudar o esforço económico dos consumidores.

E os carros de combustão?

Esta é a questão que colocam os consumidores sem capacidade para comprar ou carregar um automóvel elétrico, atualmente. Além disso, mesmo após 2035, o mercado de usados vai continuar a vender veículos com motor de combustão. A este nível, a aposta no desenvolvimento dos biocombustíveis de nova geração e na sua incorporação no gasóleo e na gasolina é o caminho. Estes têm menos emissões de gases com efeito de estufa do que os combustíveis tradicionais, sobretudo nas fases de produção e de utilização, e são considerados neutros em termos de emissões de CO2 porque o que emitem já foi retirado da atmosfera na altura do fabrico do combustível. A publicação, em breve, da norma Euro 7 irá permitir a adoção de maiores percentagens de incorporação de biocombustíveis avançados, na gasolina e no gasóleo. Segundo a Associação de Bioenergia Avançada, além dos óleos alimentares usados, poderá ser possível, num futuro próximo, a produção de biocombustíveis com recurso a resíduos, como borras de café e produtos alimentares fora de prazo, bem como algas e estrume.

Contudo, a mobilidade futura passa também por uma alteração do modo como as pessoas se deslocam. Para haver cidades mais limpas, com mais espaço para as pessoas e com menos automóveis, terá de haver menos veículos privados a circular, mesmo sendo de emissões zero. Tal implica uma maior utilização de serviços de mobilidade, em particular de transportes coletivos. É, pois, fundamental investir nos transportes públicos e nas respetivas infraestruturas, disponibilizando e ampliando o leque de soluções para o consumidor. Só com opções que garantam uma vantagem na mudança será possível criar novos hábitos de mobilidade.

Se os serviços de mobilidade, como os transportes públicos e os meios partilhados (bicicletas e trotinetes), existirem em quantidade e qualidade, a necessidade de utilizar carro próprio nos grandes centros urbanos reduz-se substancialmente. Nessa altura, muitos consumidores poderão até equacionar a necessidade de ter carro próprio.

Agir para cumprir as metas ambientais

Há que atuar em várias frentes envolvendo o Governo, as autarquias e as empresas do setor. Só assim se consegue cumprir as metas ambientais, e que a transição seja simples e sem atropelar os direitos dos cidadãos à mobilidade.

  • Apostar nos transportes públicos com o aumento da oferta e do nível de qualidade do serviço, da intermodalidade e a um preço adequado.

  • Estimular a adoção de energias limpas, como o hidrogénio e os combustíveis sintéticos, de modo a alargar o leque de opções para os consumidores.

  • Assegurar a instalação de carregadores elétricos em edifícios e espaços públicos, e alargar a rede pública de carregadores a todo o território.

  • Reduzir o custo de aquisição dos novos veículos que usem tecnologias limpas, através da criação de apoios que permitam a oferta de modelos a preços idênticos aos existentes, hoje, para os motores de combustão.

  • Aprovar e aplicar a norma Euro 7 para garantir, no imediato, uma redução das emissões dos veículos com motor de combustão. Em simultâneo, começar, assim que possível, a incorporação dos biocombustíveis avançados.

No episódio do podcast da DECO PROTeste – o POD Pensar – sobre o tema, Francisco Ferreira, Paulo Pimenta de Castro e Alexandre Marvão conversam com Aurélio Gomes sobre o fim dos motores a combustão convencional.

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