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Seca e desperdício de água deixam região do Algarve em risco

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água da torneira
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Mais de 15 milhões de metros cúbicos de água potável escaparam do sistema de distribuição no Algarve em 2022. Por incúria das entidades gestoras, que não têm investido em reabilitação das redes. Dos 16 concelhos da região, metade registou perdas elevadas, e 15 ficaram abaixo dos mínimos olímpicos de recuperação de redes envelhecidas. Apenas o município de Lagoa, que, em termos absolutos, está entre os que mais água perderam em 2022, encetou um investimento, ainda que algo tímido. Os restantes investem zero, ou próximo disso. A bitola quem no-la fornece é a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR): a reabilitação anual deve ficar entre 1,5 e 4% da rede envelhecida.

O cenário é chocante – não há como qualificá-lo de outra forma. A água perdida em 2022 bastaria para colmatar 49% das necessidades das famílias de uma região pressionada pelo turismo, que vive períodos de seca prolongada e onde, na época balnear passada, foram determinados cortes no abastecimento. Chove pouco, é um facto. Mas terceirizar a culpa para as alterações climáticas não é opção. Uma região onde pouco chove e onde a procura dispara na época estival, com o consumo médio por contrato mais elevado do País, não pode desperdiçar a água que não tem. Vamos à prova dos nove? A Quinta do Lago e Vale do Lobo têm consumos médios por contrato de, respetivamente, oito e cinco vezes a média nacional.

Conheça o volume das perdas de água no seu concelho

A mudança de mentalidades é prioridade. Entidades gestoras, municípios, agricultura, indústria, turismo e cidadãos: todos devem fazer a sua parte. Que pode começar por gestos simples de grande impacto, como instalar redutores de caudal em casa e nos alojamentos turísticos. Uma coisa é certa: o consumidor doméstico, sobretudo o residente, não pode pagar sozinho as ineficiências do sistema e os efeitos de uma cultura de descaso com um bem de primeira necessidade. A DECO PROteste opõe-se ao aumento de preços como forma fácil de abordar um problema complexo.

Tarifários específicos para consumos anómalos

A água encolhe nas albufeiras e nos lençóis freáticos algarvios perante secas cada vez mais persistentes. Mas propor aumentos tarifários para reduzir a procura em tempo de seca, como fizeram o anterior Governo, em 2022 e 2024, e a ERSAR, é avançar com uma medida de curto prazo, sem efeitos estruturais. Uma análise aos 16 concelhos da região mostra a grande disparidade de preços, que os aumentos só iriam agravar. A subida deverá incidir apenas sobre os escalões que não visam colmatar as necessidades básicas das famílias.

Estranho é que o regulador nem sequer preveja a possibilidade de criar tarifários autónomos para não-residentes e/ou grandes consumidores. Veja-se o elevado consumo na Quinta do Lago, com um valor anual médio de 951 metros cúbicos por contrato, e em Vale do Lobo e Vilamoura, com 586 e 366 por alojamento. Aqui, entre os mais gastadores, os aumentos de preços pouco efeito terão.

Nos 16 municípios do Algarve, excluindo estas três zonas, o consumo médio anual por alojamento continua a ser dos mais elevados do País, devido ao caráter de segunda habitação de muitos imóveis.

Em todos os casos sublinhados, a redução dos gastos deve ser acautelada com outras medidas. A DECO PROteste defende tarifas específicas para consumos anómalos, como a rega de jardins, o enchimento de piscinas ou outros usos que não se destinem a suprir necessidades básicas. Não é justo penalizar os residentes, que façam um uso prudente ao longo do ano, com os aumentos tarifários associados à elevada procura no verão.

Algarve vive tempestade perfeita

O Algarve vive uma tempestade perfeita, definida como aquele fenómeno meteorológico que é agravado por uma rara combinação de fatores – e que pode migrar para outras regiões do País, com o Alentejo em destaque. No Algarve, combinam-se períodos de seca prolongada com demandas elevadas de água em verões quentes, por via do turismo, que tem de encher piscinas e regar jardins e campos de golfe, e juntam-se-lhes as exigências da agricultura, da indústria, da gestão municipal e dos habitantes. Todos os interesses são importantes e, para harmonizá-los, impõe-se racionalidade no uso da água.

Mas de onde vem a água distribuída no Algarve? Segundo dados oficiais, 67% provêm de aquíferos e os restantes 33% de barragens. A agricultura absorve a maior parte da água dos aquíferos, que está em patamares críticos, por vezes, próximos do nível médio da água do mar, favorecendo a intrusão de sal em lençóis freáticos.

O abastecimento doméstico depende sobretudo das barragens. Também aqui os níveis de armazenamento são preocupantes, sobretudo no Barlavento, cujas albufeiras estavam, em abril, em 23% da capacidade – a média de referência é de 79 por cento. Mas nem mesmo o Sotavento pode respirar de alívio, com um nível de 48%, ainda assim, o mais elevado no Algarve.

As perdas de água nas redes de distribuição contribuem também para a menor disponibilidade deste recurso vital. Em 2020, perderam-se 14,6 milhões de metros cúbicos. Em 2021, o desperdício somou 15,5 milhões e, em 2022, sofreu um discreto recuo, para 15,3 milhões, o equivalente a 49% da água faturada às famílias nesse ano. Um absurdo social, quando se considera aumentar preços para forçar as famílias a consumirem menos nos concelhos atingidos pela seca, que já praticam tarifários muito díspares.

Avanços e recuos nas medidas contra a seca

Em 2022, o Governo lançou várias medidas para combater a seca no País. Uma delas foi o financiamento, dirigido à população em geral, para a instalação de redutores de caudal nas torneiras, através do Fundo Ambiental. A DECO PROteste saudou a decisão, mas defendeu que outros elementos com potencial para poupar grande volume de água no uso diário deveriam ser abrangidos, como cabeças de chuveiro eficientes e redutores para o autoclismo. Aguardam-se novidades da parte do novo Governo quanto a propostas para promover tais dispositivos.

Outra medida ainda, esta mais discutível, era o aumento tarifário a partir de um consumo de 15 metros cúbicos mensais, como forma de regrar o uso da água. Para a DECO PROteste, trata-se de uma opção com efeitos limitados e desequilibrados, devido à grande diferença de tarifários ao nível nacional. Nos municípios com preços acima da média, não é, de todo, uma política justa e equitativa.

Já em janeiro deste ano, ocorreu mais uma reunião da Comissão Permanente da Seca. Sem surpresa, a situação crítica do Algarve foi reconhecida, propondo-se medidas especiais de mitigação dos efeitos da seca, que foram sendo reforçadas nos meses seguintes.

Determinou-se, entre outros, que deveria ocorrer um corte de 15% no consumo urbano, que deveria ser reduzida a pressão da água e que não deveria ser usada água potável na rega de jardins, em fontes ornamentais, em lagos artificiais e na lavagem de viaturas, pavimentos e vias públicas. E acrescentaram-se regras para a agricultura e o turismo. Foi, por exemplo, preconizado o aumento do volume de água reutilizada, e não potável, na rega de campos agrícolas e de golfe. Para promover usos mais racionais no turismo, merece também destaque a criação do selo Save Water, que visa distinguir os alojamentos com eficiência hídrica.

Além destas medidas relacionadas com um uso racional, ficaram previstas outras de caráter estrutural, que demorarão a surtir o desejado efeito, como a construção, em Albufeira, de uma infraestrutura de dessalinização da água do mar, tecnologia ainda incipiente no Algarve, mas que tanta falta lhe faz.

Ora, em maio deste ano, o novo Executivo decidiu "aliviar" algumas medidas. Agora, o setor urbano já só tem de reduzir 10% do consumo, enquanto a agricultura e o turismo devem cumprir uma meta de 15 por cento. O Governo, pela sua parte, prometeu somar 103 milhões de euros às verbas do Plano de Recuperação e Resiliência, do Fundo Ambiental e do programa Portugal 2030 destinadas ao Algarve. Tudo para renovar redes e evitar perdas.

Resposta da ERSAR à seca? Subir preços

Em fevereiro, e como resposta às medidas introduzidas pelo anterior Governo, a ERSAR emitiu uma recomendação para a subida de preços a partir de um consumo de cinco metros cúbicos mensais de água por família. Segundo defendeu, devem ser aplicados aumentos de 15% para consumos acima de cinco e até 15 metros cúbicos mensais. A DECO PROteste é contra, por uma razão muito simples. Os 15 metros cúbicos ainda estão dentro do limite que a Organização Mundial da Saúde considera adequado para colmatar as necessidades básicas de uma família de três a quatro pessoas.

A ERSAR vai mais longe, apesar de reconhecer que as entidades gestoras praticam tarifários acima dos 100% da cobertura de custos. Recomenda até que as receitas excedentes sejam aplicadas na melhoria da eficiência dos sistemas de abastecimento. Mas não deixa de sugerir aumentos de 30% para consumos mensais superiores a 15 e até 25 metros cúbicos, e de 50% para lá destas marcas. Uma vez mais, a DECO PROteste discorda. Consumos superiores a 15 metros cúbicos não devem ser considerados desperdício tratando-se de agregados com mais de quatro elementos. Ou seja, esta proposta prejudica as famílias numerosas que vivem em concelhos sem tarifários adaptados ao seu caso ou com condições de acesso muito restritivas. E ainda são alguns os municípios algarvios nestas condições. Conclusão: propostas de aumentos tarifários em regiões de seca ignoram realidades sociais concretas.

Até ao momento, os concelhos do Algarve têm resistido aos impopulares aumentos de preços. Mas não é garantido que assim continuem, apesar de as entidades gestoras pouco ou nada investirem na renovação da rede. O que evitaria os seus próprios desperdícios.

Uma análise às tarifas dos 16 municípios, incluindo na Quinta do Lago, em Vale do Lobo e em Vilamoura, zonas turísticas com entidade gestora específica, evidencia a grande disparidade de preços. Para um consumo de 10 metros cúbicos, o custo referente à tarifa variável tem uma oscilação de 8,38 euros. Para 15 metros cúbicos, a dispersão é ainda mais elevada, com um intervalo de variação de 14,49 euros. Na prática, num município, o consumidor paga 5,16 euros e, noutro, 19,65 euros.

Reduzir os desperdícios e procurar fontes alternativas de água são planos de ação inevitáveis, mas não bastam. A adoção de plantas autóctones, e a substituição de relva e de outras espécies com grande consumo de água por opções mais resistentes, e adaptadas ao clima, são desejáveis, para reter a humidade nos solos. Uma política eficaz e estruturante olha para diversas variáveis e pesa interesses conflituantes. E, sobretudo, evita recompensar a ineficiência do sistema com aumentos tarifários justificados com a seca.

Uso racional da água: uma missão que é de todos

Promover o uso eficiente de um bem de primeira necessidade cada vez mais escasso: a missão é de cada um de nós.

Agricultura

Os aquíferos, de que depende a agricultura no Algarve, estão em níveis muito baixos. A utilização de água tratada na ETAR, mas não própria para consumo humano, ainda não é considerada, embora seja uma excelente opção para a rega, incluindo de jardins e campos de golfe, e também para lavar carros e ruas e para usos industriais.

Indústria

A água reutilizada também aqui faz todo o sentido. Que racionalidade existe em usar água potável, por exemplo, para lavar instalações industriais? A procura, pela indústria, de água reutilizada, em conjunto com o controlo das perdas no sistema de distribuição, tem potencial para conservar muitos milhões de metros cúbicos por ano.

Turismo

Face à elevada procura de água da rede no verão, o turismo tem introduzido algumas boas práticas. A DECO PROteste defende, além de medidas estruturais, a instalação, em todos os alojamentos, de redutores de caudal nas torneiras e nos autoclismos, e de cabeças de chuveiro eficientes. Já a rega de jardins e de campos de golfe deve recorrer a água reutilizada.

Cidadãos

Os mecanismos de poupança de água referidos, que têm preço acessível, devem ser também instalados em casa. Enquanto turistas, os cidadãos podem ainda reclamar, se verificarem que estes dispositivos não existem nos alojamentos. A sensibilização é chave na mudança de mentalidades, e os concelhos são chamados a assumir um papel central na mudança de mentalidades dos munícipes.

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