Saltar para o conteúdo

Sedeprivacionismo

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
A primeira publicação da revista Cahiers de Cassiciacum com o tema La Siège Apostilique est-il vacant? (em português: A Sé Apostólica está vacante?).

Sedeprivacionismo é uma escola teológica no seio do movimento tradicionalista católico que segue os princípios do falecido teólogo e matemático dominicano Michel-Louis-Guérard des Lauriers — conhecido principalmente pela atuação na declaração do dogma da Assunção de Maria pelo Papa Pio XII e autoria do Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missæ apresentado pelos cardeais Ottaviani e Bacci no Segundo Concílio Ecumênico do Vaticano — conforme expostos em sua tese teológica, dita de Cassiciacum, que trata da situação da Igreja Católica após o Concílio Vaticano II. Foi disponibilizada pela primeira vez em uma versão mais restrita, consistindo de 18 páginas datilografadas datadas da Páscoa de 6 de março de 1978, e então publicada no N.° 1 da revista Cahiers de Cassiciacum (em português Caderno de Cassicíaco) em maio de 1979.[1][2]

A tese afirma que, embora o atual ocupante da Cátedra de Pedro esteja em posse duma eleição válida, logo papa materialiter, ele não goza de autoridade para ensinar ou governar, a menos que se retrate das mudanças introduzidas no catolicismo. Trata-se então dum papa em potencial, alguém que ainda não alcançou a plenitude do Papado. Se se exige, no entanto, uma resposta limitada a sim ou não, então diz-se que não é papa: o nome do papa-eleito (dito papa de maneira simpliciter), portanto, não deve ser mencionado no cânone da missa (non una cum).[3] Assim, o sedeprivacionismo pode ser caracterizado como uma forma de sedevacantismo.[4][5]

A posição é difundida por alguns grupos católicos tradicionalistas, como o Instituto Mater Boni Consilii (Istituto Mater Boni Consilii, IMBC), o Instituto Católico Romano (Roman Catholic Institute, RCI) e os beneditinos do Priorado de Notre Dame de Bethléem em Faverney, França.[6][7][8]

A etimologia do termo sedeprivacionista (cunhado pelo teólogo britânico William Morgan com o objetivo de diferenciá-lo do sedevacantismo, posição a que aderia) “significa que há uma privação no ocupante da Cátedra de São Pedro, ou seja, algo que lhe falta”. “Sedeprivacionismo” é composto de “sede” (“” em latim) e “privacionismo” (do latim “privatio”, que significa “privação” e o sufixo “ismo”).

O episcopus vagans Donald Sanborn, Superior-geral do ICR, bem como boa parte do clero que adere à Tese de Cassiciacum (que opta pelo termo sedevacantismo), discorda do uso, classificando-o como “um termo completamente idiota”:[9]

“Isto implica que há uma privação da Sé quando se diz Sede Privata. (…) Ou pode significar que a Sé está em estado de privação. Mas nada disso é verdade. Estamos dizendo que a Sé está ocupada materialmente, mas não formalmente, e isso significa que Ratzinger [Bento XVI] está em posse de uma eleição formal, mas não está de posse do poder de governar, ensinar e santificar”.

Tese de Cassiciacum

[editar | editar código-fonte]
“Quando os Cardeais elegem o Pontífice, exercem a sua autoridade não sobre o Pontífice, porque ele ainda não existe; mas sobre a matéria, ou seja, sobre a pessoa de quem dispõem em certa medida através da eleição, para que ele possa receber de Deus a forma do pontificado”.
— Roberto Cardeal Belarmino
“O poder do Papa permanece na Igreja e no Colégio em relação ao que é material no papado, uma vez que, após a morte do Papa, o Colégio é capaz, através de eleições, de determinar uma pessoa para o papado, que seja tal ou tal pessoa”.
— Antonino de Florença

A Tese de Cassiciacum, que fundamenta a posição do sedeprivacionismo, afirma que a posse da Sé de Pedro pelo candidato deve estar em conformidade com dois requisitos de uma eleição papal legítima:

  1. O papa deve ser eleito legitimamente por eleitores validamente designados. Esse aspecto designa o candidato papal como candidato materialmente eleito e designado ao cargo de papa.
  2. O recém-eleito deve expressar sua aceitação para que, ao consentir, receba de Cristo a forma do papado: o poder ou autoridade indefectível prometido a São Pedro e seus sucessores, pelo qual o candidato eleito se torna formalmente papa e realmente toma posse do ofício papal.

A tese afirma que ambos aspectos são necessários e que se algum candidato falhar num deles, ele não seria alcançaria o cargo de papa. Os católicos que aderem à tese sustentam que todos os requerentes do ofício papal, de pelo menos Paulo VI a Francisco, são inválidos e não ocupam o ofício papal, exceto por direito de designação, devido à falha em receber a forma do papado (ou seja, a autoridade), porque sua aceitação é impedida por uma intenção defeituosa decorrente de sua manifesta disposição à apostasia.[10]

De acordo com a tese de Lauriers, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e possivelmente João XXIII foram “papas” defeituosos por causa da suposta adesão ao modernismo, movimento considerado herético pela Igreja Romana desde o século XIX. Assim, seus assentimentos para tornarem-se papas foi deficiente ou defeituoso e, portanto, eles foram legalmente designados para serem papas (pela eleição), mas impedidos de obter a sucessão completa da autoridade de Pedro. Des Lauriers sustenta que os papas do Concílio Vaticano II foram designados ao papado legalmente e continuam a Sucessão Apostólica de São Pedro apenas materialmente, o que significa que os papas do conciliares são legitimamente designados para serem verdadeiros papas, mas não formalmente. Como tais, carecem de autoridade jurisdicional devido ao obstáculo que colocam à recepção da autoridade. O clero dito Novus Ordo, portanto, não é a autoridade, nem são verdadeiros papas ou verdadeiros bispos, mas estão legalmente em posição de — como o clero ariano reunido à ortodoxia — se tornarem verdadeiros papas e bispos caso removam o obstáculo à recepção da autoridade do ofício. Assim, é implícito que Bento XVI e Francisco teriam recebido o mesmo julgamento de des Lauriers.

“A Sucessão Apostólica pode ser definida da seguinte maneira: a pública, legítima, solene e jamais interrompida reposição dos Apóstolos por pessoas para governar e apascentar a Igreja no lugar deles. Essa sucessão pode ser material ou formal. A sucessão material consiste no fato de que nunca faltaram pessoas e de que a substituição dos Apóstolos por elas continuou sem interrupção. A sucessão formal consiste no fato de que essas pessoas que os substituem desfrutam realmente da autoridade derivada dos Apóstolos e recebida da parte daquele que a pode comunicar. Estas últimas palavras . . . indicam que, para a sucessão formal, é exigida missão, a qual pode ser definida como: a legítima assunção e deputação a assumir os encargos apostólicos em virtude das quais se sucede ao lugar dos Apóstolos”.
— Hermann
  1. Não existe um estado de Sede vacante real nos papas Novus Ordo, uma vez que fisicamente um homem desempenha o papel de papa em potencial;
  2. Se o atual papa em potencial se afastar do modernismo e retornar ao catolicismo, ele completará o processo e alcançará a plenitude do papado;
  3. Indiscutivelmente, a rivalidade entre aqueles tradicionalistas que dizem que a Cátedra de São Pedro está totalmente vazia (sedevacantistas) e aqueles que dizem que está totalmente ocupada (ditos sedeplenistas, por exemplo, a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X) pode chegar ao fim, pois a resposta não é nenhuma dessas duas explicações, uma vez que ambas comprometem ou a perpetuidade da Sucessão Apostólica ou a doutrina da indefectibilidade petrina e infalibilidade papal.

A controvérsia da retratação

[editar | editar código-fonte]
A carta na qual Guérard des Lauriers afirma a presença de enormes erros teológicos (erreurs théologiques énormes) numa tese.

Em meados do natal de 2019, o historiador francês Louis-Hubert Remy divulgou em seu sítio eletrônico uma vaga carta (pública desde pelo menos 2014) na qual Guérard de Lauriers — em correspondência com Alfred Denoyelle (então diretor da revista lefebvriana Mysterium Fidei) — teria se retratado de uma tese (supostamente a cassiciense) inespecífica por nela conterem "enormes erros teológicos".[11] O Instituto Madre do Bom Conselho, através de sua revista Sodalitium, questiona tanto a veracidade da carta atribuída ao teólogo quanto o sentido polêmico dado a ela, alegando tratar-se de uma "falsa retratação".[12] O sacerdote Hervé Belmont, ex-aluno do prelado francês e um dos difures de sua tese mais conhecida, não questiona sua veracidade mas chega a conclusões semelhantes às do instituto italiano, reiterando tanto a vagueza do escrito quanto a legitimidade da tese guérardiana independentemente de uma suposta retratação oculta do autor.[13] Em 2022 uma perícia grafotécnica confirmou a autoria da carta.[14]


  1. Entrevista com Mons. Guérard des Lauriers op - Curriculum vitae , em O problema da autoridade e do episcopado na Igreja , Sodalitium Library Center, 2005, p. 29 .: «O Padre Guérard des Lauries publicou, em 1978, e depois nos" Cahires de Cassiciacum ", uma tese até agora não refutada; esta tese consiste em afirmar a vacância FORMAL da Sé Apostólica, certamente a partir de 7 de dezembro de 1965. ”
  2. Pe. Francesco Ricossa, Introdução ao problema da autoridade , em O problema da autoridade e o episcopado na Igreja , Centro Librario Sodalitium, 2005, p. 28 .: “RP GUÉRARD DES LAURIES op, Le Siège Apostolique est-il Vacant?”, Cahiers de Cassiciacum, n. 1, Association St. Herménégilde, Nice 1979. Ver também B. LUCIEN, LA Situation actuelle de l'Autoritè dans l'Eglise - La Thèse de Cassicacum Documents de Catholicité 1985."
  3. «Who we are – Sodalitium» (em italiano). Consultado em 22 de outubro de 2020 
  4. Ricossa, Francesco (Dezembro de 2001). «Le Sel de la Terre ed il sedevacantismo». Sodalitium (53) 
  5. Ricossa, Francesco. «La Tesi di Cassiciacum non si basa sull'eresia». YouTube 
  6. Sanborn, Donald J. «De Papatu Materiali». Most Holy Trinity Seminary 
  7. «Intervista a Mons. Guérard des Lauriers o.p. sulla Tesi di Cassiciacum». Sodalitium 
  8. «Priorado beneditino de Nossa Senhora de Belém». Prieuré Notre-Dame de Bethléem à Faverney 
  9. «Interview with Bishop Donald Sanborn, on Vatican II, the SSPX, and the Motu Proprio». True Restoration 
  10. SANBORN, Donald. «The Material Papacy». Sodalitium. Through an impediment of the moral order, however, they cannot receive papal power who posit a certain moral obstacle, both voluntary and removable, for example, the refusal of episcopal consecration, or the intention of teaching errors or of promulgating harmful general disciplines, or the refusal of baptism in the case of the election of a catechumen (for example, St. Ambrose, elected to the episcopal see of Milan) These are capable of a valid designation because the impediment is removable, but the authority cannot be infused by God until the impediment is removed. The reason is that they are not capable of promoting the common good to the extent that they do not remove the obstacle. And because the impediment is moral and voluntary, the obstacle is reduced to an absence of the intention of promoting the common good. 
  11. «La Rétractation de MONSEIGNEUR GUÉRARD sur laTHÈSE DE CASSISIACUM | LE CATHOLICAPEDIA BLOG ²» (em francês). 22 de dezembro de 2019. Consultado em 16 de outubro de 2022 
  12. «De ore tuo te judico… (Lc 19, 22). Fausses rétractations et faux amis». Sodalitium (em francês). 30 de dezembro de 2019. Consultado em 16 de outubro de 2022 
  13. Belmont, Hervé (2020). «Rétractation ? Et alors ?…». Quicumque. Consultado em 16 de dezembro de 2022 
  14. http://archive.org/details/dossie-guerard-des-lauriers-ricossa-mentiu-laudo-grafotecnito-29701.2022