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Lisboa islâmica: uma cidade para imaginar e descobrir a pé

Um bom par de ténis, muita curiosidade e um mapa é quanto precisa para explorar os vestígios deixados por al-Ushbuna, a Lisboa islâmica, conquistada por D. Afonso Henriques em outubro de 1147.

01 fevereiro 2023
Escavações arqueólogicas no claustro da Sé de Lisboa, onde foram encontrados vestígios da Idade do Ferro e dos períodos romano, islâmico e medieval cristão

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Entre na máquina do tempo, saia em junho de 1147 e siga para o alto daquele que viria a ser conhecido como Monte de Sant'Ana, às portas de al-Ushbuna. Para acertar o GPS mental, trata-se do Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, local onde muitos estimam que D. Afonso Henriques terá montado acampamento. Retire os prédios e troque-os por hortas e vinhas, com casas, moinhos e sistemas de irrigação. Olhe ao redor: está no meio do exército portucalense. Enquanto espera pela armada de cruzados que virão ajudar à conquista, apertando o cerco pelo lado do rio, entretenha-se a contemplar o castelo bem defendido de muralhas. Repare ainda nas ribeiras à sua volta, que desaguam no Tejo: à esquerda, a que corre pelo Vale de Arroios, hoje a Avenida Almirante Reis, e, à direita, a que desce pelo Valverde, que conhecemos como Avenida da Liberdade. Se vir bem, juntam-se no ponto atualmente coberto pela Praça da Figueira. Neste exercício de imaginação, retire ainda a Baixa, a Praça do Comércio e tudo o que vai da Casa dos Bicos até ao rio, e deixe apenas as águas do Tejo, com as marés que recuam e avançam sobre o Arrabalde Ocidental. E deixe as colinas: da Graça, da Senhora do Monte, da Pedreira (Chiado e Carmo). Com todos estes obstáculos, reconheça que, sem navios, não conseguirá conquistar esta cidade do al-Andalus, o nome árabe dado à Hispânia muçulmana.

Programe agora a máquina do tempo para fevereiro de 2023 e desça do Campo dos Mártires da Pátria até ao Martim Moniz, suba as escadas rolantes para o monte do castelo, percorra a antiga freguesia de São Cristóvão e São Lourenço, o mesmo espaço onde se crê que vivia a população cristã de al-Ushbuna. Passe pela Igreja de São Lourenço, contorne o monte até à Igreja de São Cristóvão, atravesse o Largo Adelino Amaro da Costa e corte para o Largo de Santo António. Começa aqui a aventura pela Lisboa islâmica, junto à Ba'b al-Gharb (Porta do Ocidente) ou al-Ba'b al-Kabir (Porta Grande), a Porta do Ferro dos romanos. O traçado da cerca de al-Ushbuna coincide, em muitos momentos, com o da muralha romana. Muralhas são organismos vivos, sucessivamente reutilizados e modificados.

Para conquistar a cidade em 2023, pode dispensar os navios, mas não um bom par de ténis, curiosidade e o mapa do circuito sinalizado pela Câmara Municipal de Lisboa. Por vezes, surgem passeios guiados, organizados pela autarquia, pelo Museu de Lisboa - Palácio Pimenta ou por privados. Terá de ficar atento e pesquisar na internet ou telefonar. Se for sozinho, veja antes o vídeo do Arquivo Municipal de Lisboa, para se documentar. Depois, há museus, alguns com visitas guiadas, se quiser aprofundar aspetos da Lisboa islâmica. É o caso do Castelo de São Jorge, do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, do Museu Nacional de Arqueologia, da Sé de Lisboa e, claro, do Museu de Lisboa - Palácio Pimenta. Ah! E não se esqueça da máquina fotográfica ou do telemóvel para capturar as melhores imagens: se precisar de ajuda na escolha, explore os comparadores online da DECO PROTESTE.

Um circuito pedonal à volta das muralhas

A seguir, reproduz-se um mapa da Lisboa islâmica por volta de 1140, que identifica alguns dos pontos de interesse indicados pela autarquia. Para que não saia da máquina do tempo, os nomes das portas foram mantidos em árabe, embora figurem as designações em português.

Mapa de Lisboa

Fonte: Manuel Fialho Silva | Gabinete de Estudos Olisiponenses 

01. Ba'b al-Gharb / al-Ba’b al-Kabir (Porta do Ocidente ou Porta Grande)

A Porta do Ocidente ou Porta Grande localizava-se no atual Largo de Santo António. Procure a placa com o esquema da muralha e da porta. A Câmara de Lisboa preparou várias placas ao longo do percurso, com informação histórica resumida.

Largo de Santo António e Sé

A porta principal ficava no atual Largo de Santo António, próxima da mesquita aljama, sobre os restos da qual foi edificada a Sé.

02. Mesquita aljama

A mesquita principal teria tipicamente um oratório, um nicho a indicar a direção de Meca (mihrab), um púlpito para o imã (minbar), uma zona de abluções (lavagem purificadora de partes do corpo) e, pelo menos, um minarete e uma cúpula. A Sé foi erguida em cima dos restos destas estruturas.

03. Ba'b al-Bahr (Porta do Mar)

Desça para a Rua dos Bacalhoeiros. Mais ou menos onde se ergue a fiada de edifícios da Rua da Padaria, passava a muralha, que depois declinava para a Casa dos Bicos, a acompanhar o rio. Logo após o Arco das Portas do Mar, perto de onde se abriria a Porta do Mar, está a Casa dos Bicos. Neste local, foram encontrados vestígios tardorromanos e medievais da muralha.

04. Ba'b al-Madiq (Porta do Furadouro)

A Porta do Furadouro é "antecessora" do Arco de Jesus, onde também se veem vestígios. O hotel ao lado tem mais: os arqueólogos observaram três momentos construtivos da muralha (romano, tardorromano e medieval).

05. Ba'b al-Hammam (Porta de Alfama)

Por altura do que é agora o Chafariz d'El-Rei, a muralha infletia para a colina. Pode ver a Torre de São Pedro, junto à Rua de São João da Praça. Hoje marcada no pavimento, a Porta de Alfama estava perto. Se entrar no pátio da casa de fados ao lado, contemplará mais um troço de muralha. Nesta zona, ficavam os banhos, al-hammam, de que brotou a palavra "Alfama".

Torre de São Pedro

A Torre de São Pedro tinha mais de 20 metros de altura e, pelo menos, no período medieval cristão, chegou a ser uma prisão.

06. Ba'b al-Maqbara (Porta do Cemitério)

A muralha sobe rumo às Portas do Sol, local da Porta do Cemitério, acompanhando a escadaria da Rua Norberto Araújo. Lá no alto, aprecie o rio, a Graça, São Vicente de Fora e Alfama. E repare na Fundação Ricardo do Espírito Santo e nos edifícios atrás, onde estão incrustados troços da muralha (no pátio desta instituição, existem estruturas de uma habitação). Siga pelo Beco do Maldonado e vire à esquerda, para o Pátio de D. Fradique.

Rua Norberto Araújo e Largo das Portas do sol

A Rua Norberto Araújo, à esquerda, tem um grande troço de muralha onde é visível o aproveitamento de silhares (pedras aparelhadas) da época romana. Este troço seguia para o Largo das Portas do Sol, à direita. Na fachada da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, os vestígios são muito evidentes.

07. Alcáçova

Zona da cidade reservada à elite, tinha muralha, visível no Largo do Chão da Feira, e mesquita, cemitério e guarnição militar. O castelo e o bairro adjacente ocupam hoje esse espaço.

Bairro da Praça Nova e moldes em xisto

Na Praça Nova, dentro do Castelo de São Jorge, foi identificado um bairro reservado às elites, cujas casas se organizavam em redor de um pátio interior. O Núcleo Museológico expõe peças aqui escavadas, como estes moldes de xisto. Datados do século XII, contêm orações e versículos corânicos destinados a proteção, e serviam para produzir medalhões de trazer ao pescoço.

08. Ba'b al-Ghadr (Porta da Traição)

No troço norte da muralha, a Porta da Traição destinava-se a fazer entrar na alcáçova reforços militares ou provisões. Permitia ainda a evacuação rápida, sem passar pela cidade.

09. Ba'b al-Hawha (Porta da Alfofa)

A Porta da Alfofa ou do Postigo ficava um pouco acima do atual Chapitô. Era uma porta de serviço, que dava acesso à estrada de circunvalação do morro.

Que Lisboa era al-Ushbuna?

O cheiro das madalenas – esses bolos do tipo queque, mas sem o recorte das ameias dos castelos – era, para o escritor francês Marcel Proust, o meio de transporte até à sua infância. O medievalista português Hermenegildo Fernandes atribui à Sé de Lisboa a mesma função de chave de acesso ao nosso passado coletivo. Usado desde a Idade do Ferro, este espaço foi testemunho da alternância de poderes ao longo da História, e aqui foi erguida a mesquita aljama no período islâmico. Nascida do verbo jama'a, "juntar", era o epicentro da vida de uma cidade ligada ao Mediterrâneo, de que os muçulmanos eram senhores, mas onde habitavam também cristãos e judeus. Ao porto de al-Ushbuna chegavam mercadorias do resto do al-Andalus, do Norte de África e do Oriente. Das margens do Tejo partiam produtos como cereais, arroz, azeite, frutos, âmbar e ouro. Nas praias de Almada, o geógrafo al-Idrisi, que por estas bandas passou pouco antes da conquista, observou a apanha de pepitas de ouro, como se fossem conchinhas... De al-Ushbuna, partiria também o vinho, celebrado na poesia. A vinha era cultivada em locais como Xabregas, Alvalade, Odivelas, Famões e Bucelas.

Peças encontradas em Lisboa

À esquerda, um candil do século XII escavado e exposto no Castelo de São Jorge (© EGEAC/CSJ | Laura Caldas e Paulo Cintra). À noite, a luz destes candeeiros a azeite iluminava casas, palácios e mesquitas. Ao centro, o fragmento de uma estela funerária com inscrições em árabe (© EGEAC/CSJ | Laura Caldas e Paulo Cintra). Encontrado no Castelo de São Jorge, pertencia talvez a um membro da elite. À direita, cerâmica de produção almóada, do século XIII (© Museu Nacional de Arqueologia | DGPC/ADF | José Paulo Ruas). Escavada no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, está exposta no Museu Nacional de Arqueologia.

 

Foi esta cidade dinâmica, com população de diferentes matrizes sociais e religiosas, que D. Afonso Henriques conquistou em 1147 com a ajuda de gentes do Norte da Europa. Muitos acabariam por ficar, adensando o hibridismo de uma urbe que nunca se fechou às trocas. E a delicada peça de cerâmica em tom esverdeado, que foi encontrada nas escavações do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, sugere isso mesmo. Terá sido produzida no século XIII em meio almóada, ou seja, no contexto de uma dinastia norte-africana que ainda dominava, grosso modo, os territórios dos atuais Alentejo e Algarve, mas que nunca governou al-Ushbuna. Mesmo assim, a peça pertencia a uma Lisboa já cristã.

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