Paula Duarte: “Os jovens de hoje podem levar mais tempo até terem uma identidade mais coesa”

Publicado a 07 abril 2024

Mais tarde ou mais cedo, todos podemos sucumbir a perturbações do foro emocional ou mental, como ansiedade, stresse, insónia ou até depressão. Os mais jovens parecem ser mais vulneráveis, mas revelam uma vantagem: não têm pudor de falar sobre emoções e procurar ajuda, diz o inquérito da DECO PROteste, cujos resultados a psiquiatra Paula Duarte ajudou a interpretar.

Victor Machado Entrevista Paula Duarte

Causas e sintomas dos problemas de saúde mental

“No desemprego, temos uma situação de adversidade social. Apesar de tudo, é melhor ter problemas no trabalho do que não ter trabalho.”
Entrevista Paula Duarte
“Há uma série de novas constelações familiares, que colocam novos desafios aos jovens, e talvez seja mais difícil encontrar figuras sólidas de identificação dentro da família, pelo que tenderão a procurá-las fora. Pode ter vantagens e desvantagens.”

Ansiedade, stresse e perturbações de sono são os problemas mais reportados no inquérito da DECO PROteste, independentemente da idade e do género. Também relevante, cerca de 30% dos jovens dos 18 aos 34 anos dizem-se em instabilidade emocional constante. Como vê estes resultados, à luz da sua experiência no terreno?

Os primeiros resultados não surpreendem, porque as perturbações de ansiedade são as mais frequentes e, portanto, corresponderão às queixas mais comuns, seja nas consultas de psicologia, seja nas de psiquiatria.

O segundo achado, referente aos jovens, também não me surpreende: pode ter uma série de explicações, umas de caráter mais individual, as outras de caráter mais geral. Fatores de instabilidade, quer na organização da nossa sociedade, quer também políticos, nomeadamente, as eleições, ou ainda a desvantagem económica e as notícias que vêm ter connosco, como as relacionadas com a guerra, podem contribuir.

Como eu dizia, tem que ver com a própria organização da sociedade, uma vez que muitas famílias já não têm a constituição que tinham há 50 anos. A família, hoje, acaba por ser, em termos gerais, um lugar menos seguro. Portanto, não me surpreende que os jovens sintam instabilidade na maior parte do tempo, porque não sei até que ponto os modelos dos adultos são suficientemente securizantes. Não sei até que ponto os pais e os professores transmitem modelos sólidos com que os jovens se possam identificar, para se sentirem menos instáveis ou frustrados.

O inquérito revela que há fatores externos muito comuns, geralmente com menos impacto, como os conflitos familiares, laborais ou escolares, e depois há problemas menos comuns, que tendem a ter maior impacto, como o desemprego e as questões de saúde. É também esta a perceção que tem?

Os primeiros fatores são transversais. Quando pensamos nas queixas, nos sintomas, nos sinais, que nos chegam à psiquiatria, se formos mais fundo do que fazer apenas um levantamento desses sinais e sintomas para, a seguir, colocarmos um diagnóstico, conseguimos ver que essas dificuldades ao nível familiar, laboral ou académico são mais ou menos universais. Portanto, atravessam todos os planos psiquiátricos, são subjacentes.

Já no desemprego, temos uma situação de adversidade social. Apesar de tudo, é melhor ter problemas no trabalho do que não ter trabalho. Da mesma maneira que, para quem se sente muito só, e isto funciona sobretudo para os homens, estar numa relação conjugal não inteiramente satisfatória seja melhor do que estar divorciado. Para as mulheres, não é tanto assim. Mas os homens ficam, efetivamente, numa situação de maior desvantagem, de maior vulnerabilidade em termos de saúde mental, quando se divorciam.

E se pensarmos depois noutras circunstâncias, como situações de guerra ou de emigração, são também de adversidade social, que tornam as pessoas mais vulneráveis do que as que têm os problemas de fundo, universais, como sejam as dificuldades ao nível familiar, laboral ou académico. Não existe o trabalho perfeito, não existe a família perfeita e também não existem professores ou escolas perfeitos. As situações de adversidade social, de fator negativo, como são ainda a pobreza e a solidão, tornam o viver mais difícil. Felizmente, não são universais, mas, quando estão presentes, são mais desvantajosas.

Quem é Paula Duarte?

Psiquiatra, psicoterapeuta, médica no Centro Hospitalar Lisboa Oeste, docente na Nova Medical School e autora do blogue “Saúde Mental XXI”.

Estigma social e dificuldade em falar de emoções

"As pessoas terem a ideia de que são capazes de resolver sozinhas as suas dificuldades não é necessariamente uma coisa negativa."

Muitos dos inquiridos que não fazem tratamento para tratar as questões de saúde mental dizem conseguir resolvê-las sozinhos ou ter dificuldade em falar dos problemas. Ainda existe a ideia de que é preciso aguentar calado? Ou o estigma que tem envolvido a saúde mental está agora mais esbatido?

As pessoas terem a ideia de que são capazes de resolver sozinhas as suas dificuldades não é necessariamente uma coisa negativa. Senão, toda a gente precisaria de andar com um psicólogo ou com um psiquiatra atrelado ao tornozelo. Espera-se que as pessoas tenham mecanismos de coping, que são estratégias que já usaram, com sucesso, e que estão ao seu alcance, se tiverem dificuldades novas.

Agora, quando é que a pessoa deve procurar ajuda? Quando o sofrimento se arrasta por muito tempo, quando as estratégias habituais para fazer face às dificuldades não estão a ter sucesso e quando o nível de sofrimento atinge uma intensidade que a pessoa reconhece ser superior àquilo por que já passou na vida. Portanto, pela duração, pela intensidade ou porque as estratégias que utiliza não estão a ser eficazes.

Porque é que muitas pessoas não gostam de falar dos seus problemas? Em parte, naturalmente, porque existe ainda um estigma associado à doença mental e, assim, há uma certa relutância, uma certa reserva em falar dos problemas. Mas também penso ter que ver com questões de natureza cultural. Nos países anglo-saxónicos, as pessoas tendem a procurar, junto da comunidade ou dos amigos, apoio no sentido mais lato. Nós também temos a figura do amigo com quem confidenciamos, mas não temos muito a tradição de nos expormos, por exemplo, em grupos de autoajuda e de procurarmos nesses grupos um lugar de partilha, para recolhermos algum suporte de quem está a passar por situações parecidas.

Acho que também é muito importante dizer que existe uma série de estratégias terapêuticas, umas farmacológicas e outras não farmacológicas, que permitem diminuir a intensidade e a duração dos sintomas e do sofrimento de natureza psíquica, e que permitem, assim, que a pessoa sinta menor impacto. E sabemos hoje que a combinação de estratégias farmacológicas e de natureza social acaba por ser mais eficaz do que qualquer uma delas isoladamente.

Portanto, não há mal nenhum em que a pessoa tente usar os seus recursos contra o sofrimento, mas também é importante passar a ideia de que existem outros recursos que podem ser utilizados para minimizar o sofrimento e aumentar a funcionalidade em termos profissionais e académicos, mas também em relação aos papéis desempenhados dentro da sociedade e da família. É importante que nos mantenhamos funcionais ao nível familiar. Um pai ou uma mãe que não está bem, que está em sofrimento psicológico, é menos capaz de desempenhar as suas funções parentais. Se não estamos bem, também não conseguimos ajudar os nossos amigos, nem as pessoas que nos são mais queridas.

E, às vezes, quando uma única pessoa da família muda e começa a tratar-se, tudo o resto começa a recompor-se.

Sem dúvida, um conjunto de pequenas mudanças pode acabar por ter impacto no agregado familiar. Isso nota-se muito, por exemplo, em mães deprimidas. As crianças pequenas com mães deprimidas tendem a ter mais problemas comportamentais. É muito importante tratar a depressão materna, porque se traduz não só na melhoria do rendimento escolar das crianças, como também na diminuição dos seus problemas comportamentais. Tratando a mãe, melhora a relação conjugal e diminui o sofrimento dos filhos.

Medicação e psicoterapia

“Nas doenças mentais mais graves, há muito maior peso de aspetos de natureza biológica do que de aspetos de natureza psicossocial, e, nestes casos, os medicamentos são mais eficazes.”
Entrevista Paula Duarte
"É muito importante tratar uma depressão materna, porque se traduz não só na melhoria do rendimento escolar das crianças, como também na diminuição dos seus problemas comportamentais. Tratando a mãe, melhora a relação conjugal e diminui o sofrimento dos filhos."

Quase 70% dos participantes no inquérito que fizeram tratamento tomaram medicação e metade fizeram psicoterapia. A psicoterapia ainda é menos usada, porque menos comum no público e cara no privado, mas os inquiridos revelam maior satisfação com os resultados do que com a medicação. Como vê o uso destas duas ferramentas na abordagem à saúde mental?

De facto, sabemos hoje que, quando são utilizadas [estratégias combinadas], os resultados são melhores. De forma muito simplificada, diria que os fármacos têm uma vantagem, que é permitir o alívio mais rápido do sofrimento do que a psicoterapia.

Qual é a vantagem da psicoterapia relativamente aos fármacos? Como tende a produzir mudanças não só na forma de pensar como também na de reagir e de sentir face à doença mental, essas mudanças tendem a ser mais duradouras, uma vez que, terminada a medicação, sobretudo se é terminada de forma precoce, os sintomas podem permanecer para lá do tratamento. Daí a importância de fazer o tratamento farmacológico durante o tempo necessário para controlar os sintomas e evitar recaídas.

Estou de acordo em que a psicoterapia tem vindo a ganhar maior popularidade, sobretudo nas pessoas mais jovens, o que também faz sentido, porque os mais jovens são mais flexíveis, mais maleáveis e, portanto, mais passíveis de mudança. À medida que avançamos na idade, a nossa capacidade de mudarmos também vai diminuindo e, portanto, até faz algum sentido que as psicoterapias sejam mais procuradas pelas pessoas mais jovens, precisamente porque a margem de mudança é maior. Nas pessoas de mais idade, provavelmente, há maior procura de uma resposta de tipo farmacológico, e faz algum sentido também.

Será como que uma cultura de gerações? As pessoas mais velhas poderão pensar que, se não houver um comprimido, não será bem um tratamento?

Talvez persista essa ideia. De qualquer forma, a instrução que tem quem trabalha na área da saúde mental, sobretudo se tem responsabilidades formativas, como é o meu caso – que, neste momento, dou aulas na Faculdade de Ciências Médicas [Nova Medical School] –, é tentar passar a ideia de que as doenças mentais são entidades biopsicossociais e, por isso, devem ser encaradas como tal, não só no sentido em que os fatores dos três tipos concorrem para o seu aparecimento, como também em que a solução passa por tentar chegar a todos esses fatores.

Tentamos passar essa informação e, neste momento, estamos a passá-la às gerações mais jovens, porque as gerações mais velhas têm a perceção de que quem está doente procura o médico, e que o médico vai encontrar uma solução, que vai ser prescrita e obter resultados. Penso que sim, que haverá uma leitura menos complexa [por parte dos mais velhos] do que é a doença mental.

Há outra mudança que se tem tornado notória, e eu já estou nisto há mais de 30 anos. Dantes, havia muito mais relutância, porque o estigma era muito maior relativamente à saúde mental, e as pessoas tendiam a procurar mais os neurologistas. Ou seja, coibiam-se de ir ao psiquiatra, procurando em alternativa um neurologista. Isso também tem vindo a mudar, e hoje mais facilmente as pessoas procuram o psiquiatra, reservando à neurologia aquilo que é da neurologia.

Uma das vantagens da psicoterapia não será atacar o problema de fundo? Claro que, muitas vezes, as pessoas estão a sofrer, precisam de medicação, que age no curto prazo, como explicou, mas a medicação nem sempre resolve a causa externa, a perceção sobre o divórcio, a perceção sobre o desemprego.

Essa pergunta é interessante, e vou distribuir a resposta, fundamentalmente, por dois aspetos. Se a sintomatologia que traduz o sofrimento tiver uma relação óbvia com circunstâncias de adversidade, eventos de vida negativos, como uma situação de divórcio, de desemprego, uma rutura no namoro nos mais jovens, uma separação, a psicoterapia consegue ir mais fundo no sentido de ajudar a pessoa a encontrar novas oportunidades e novos começos.

Todavia, há doenças mentais mais graves, que têm muito menos relação com essas circunstâncias de adversidade, ainda que também possam estar presentes. Mas o peso dessas adversidades, face àquilo que é determinado do ponto de vista biológico e genético, é muito menor. Assim, nas doenças mentais mais graves, há muito maior peso de aspetos de natureza biológica do que de aspetos de natureza psicossocial, e, nestes casos, os medicamentos são mais eficazes.

No fundo, o doente não pode mudar a perceção da sua biologia.

Sim, sim. E isso acontece muito nos quadros de depressão. Existem muitas formas de depressão, muitos quadros depressivos. Os menos graves do ponto de vista psiquiátrico respondem mais mal aos fármacos. Nesses, justificam-se mais as intervenções de natureza psicossocial, e não me refiro exclusivamente às psicoterapias. Há intervenções de natureza social que podem ter um efeito contrário aos acontecimentos de vida negativos, e ajudar a pessoa a sentir que aconteceu uma coisa positiva e que tem direito a um recomeço na sua vida.

Por outro lado, quando a depressão é bastante grave, tem maior peso de fatores de natureza biológica, e esses quadros têm muito mais indicação para tratamentos farmacológicos, que aí são muito mais eficazes do que os tratamentos de natureza psicossocial.

As doenças mentais são entidades biopsicossociais e, por isso, devem ser encaradas como tal, não só no sentido em que os fatores dos três tipos concorrem para o seu aparecimento, como também em que a solução passa por tentar chegar a todos esses fatores.

Saúde mental dos jovens

“A sociedade tem vindo a mudar muito, e o lugar central que a família ocupava já não ocupa.”

Os jovens reportam mais problemas de saúde mental do que os mais velhos, sendo que 54% dos indivíduos dos 18 aos 34 anos revelam estar em níveis de sofrimento emocional elevados ou muito elevados. Como se explica? Têm mesmo mais problemas ou será que as novas gerações estão mais disponíveis para falar sobre saúde mental? Outra hipótese: não aceitam sofrer em silêncio e, nesse sentido, estamos a assistir a uma mudança de paradigma? Ou será que, como muitos acusam, os jovens foram protegidos pelos pais e estão menos preparados para enfrentarem as dificuldades do que as gerações anteriores?

Todas as hipóteses fazem sentido. Sobretudo os mais jovens, têm menos pudor de falar sobre questões de saúde mental, o que faz com que mais facilmente procurem cuidados nesta área. Por outro lado, a última guerra na Europa, tirando a dos Balcãs, nos anos [19]90, terminou em 1945. As gerações do pós-guerra têm sido confrontadas ciclicamente com dificuldades económicas, mas não com os horrores da guerra, e, também por isso, assistimos, por exemplo, ao desaparecimento do serviço militar obrigatório, que preparava os homens e constituía um ritual de passagem da adolescência para a idade adulta. Perdemos isso porque a Europa tem estado em paz, grosso modo, desde o final da II Guerra Mundial, pelo que se tornou menos necessário acautelar a formação das gerações mais jovens para um cenário de guerra e, nesse sentido, também podemos considerar que as pessoas têm vindo a ficar menos preparadas para encarar a adversidade – eu própria, que nasci no pós-guerra, e até assisti a um período de crescimento económico em Portugal, na transição dos anos [19]80 para os anos [19]90. De certa maneira, já fui menos preparada para as circunstâncias de adversidade do que foram os meus avós ou, mesmo, os meus pais.

Depois, acho que a sociedade tem vindo a mudar muito, e o lugar central que a família ocupava já não ocupa. Há uma série de novas constelações familiares, que colocam novos desafios aos jovens, e talvez seja mais difícil encontrar figuras sólidas de identificação dentro da família, pelo que tenderão a procurá-las fora. Pode ter vantagens e desvantagens. Uma desvantagem é haver muitos modelos fora da família, e, então, porque vamos preferir um em detrimento de outro? Ou então, numa altura, preferimos um e depois já queremos outro, enquanto, quando a família funcionava como modelo e reduto de segurança, não se colocava tanto a questão de procurar modelos alternativos, porque estavam disponíveis e eram suficientemente sólidos para não gerar essa necessidade.

A sociedade tem mudado tanto que eu estou convencida de que, efetivamente, as gerações mais jovens estão um bocadinho mais perdidas. Pode significar que levarão mais tempo até encontrarem o seu caminho e os seus modelos e, deste modo, até terem uma identidade mais definida, mais coesa, mais firme, e uma identidade mais coesa está associada a menores índices de distress, de sofrimento, de instabilidade. Até estas pessoas encontrarem a sua estabilidade, o seu modelo, aquilo que querem ser, provavelmente, terão um percurso mais acidentado e mais instável do que aquelas que têm mais facilidade em encontrar o seu caminho, o seu papel, o seu lugar na família e na sociedade onde cresceram. E estão mais abertas a falar sobre os seus problemas no sentido de pedirem ajuda. No fundo, andam à procura de respostas.

 

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