Os melhores restaurantes de bitoque em Lisboa
Durante muitos anos, foi visto como um prato menor, tantas vezes uma opção fora da carta. Mas a febre do bitoque está em alta. O crítico gastronómico Ricardo Dias Felner, bitoqueiro assumido, chegou a três finalistas, fez uma última prova e diz quem ganhou.
- Editor
- Ricardo Dias Felner
![bitoque, bife de vaca com ovo estrelado e muito molho servido no prato em restaurante](https://www.deco.proteste.pt/-/media/edideco/images/home/familia-consumo/ferias-lazer/news/2024/bitoque/bitoque.jpg?rev=3bd59d3d-e84f-4689-a27d-d1e37a9e8ae9&mw=660&hash=BB2BA68E96CE157514EAD52835AD0797)
Primeiro esclarecimento: o conceito de bitoque proíbe luxos. Ou seja, esqueça os bitoques de chef, esqueça os bitoques do lombo e da vazia, os guarnecidos com foie gras ou polvilhados com flor de sal. Todos foram aqui desconsiderados. Bitoque é comida de restaurante popular, de tasca ou de cervejaria. Bitoque é a alternativa gulosa para quando falta verba para o bife.
O segundo esclarecimento tem que ver com a circunscrição geográfica. Há bons bitoques por todo este Portugal, mas em Lisboa estão mais disseminados. Em nenhuma outra cidade há tantas casas a fazê-los, tanta competição, tanto entusiasmo a comê-los. Se quisermos fechar ainda mais o foco, arrisco dizer que, dentro de Lisboa, é no bairro de Alvalade que mais cozinheiros o praticam, há mais tempo. Há uns 40 anos, lembro-me de ir, pela mão do meu pai, ao alvaladense Tico Tico, comer o melhor bitoque de Lisboa. Do Tico Tico, nessa altura, ainda uma pequena tasquinha, sairiam muitos cozinheiros e empregados de mesa que se foram espalhando por cervejarias e marisqueiras vizinhas, como o Pirilampo ou o Sem Palavras. Talvez por isso, dois dos finalistas desta lista ficam em Alvalade, a 200 metros de distância um do outro.
Bitoque com história criativa
Hoje, dir-se-ia que alguns filhos superaram os pais, mas a receita terá a mesma inspiração. E qual é a receita? As variações do bitoque são muitas, talvez porque falte um registo escrito fidedigno sobre a autoria. As teorias sobre a origem abundam, sendo uma delas a de que o prato tem inspiração numa espécie de almôndega vinda da Rússia, conhecida por bitok, que acompanha com natas ácidas.
Menos rebuscada parece a ideia de que terá sido um imigrante galego, de apelido Bitoque, a trazer a receita para Lisboa. A minha teoria preferida é a que encontrei algures numa caixa de comentários da internet, e que diz o seguinte: sendo o bitoque "um bife com ovo a cavalo, e, como a parte da gema lembra um toque, aquele capacete redondinho de equitação, bife mais toque igual a bitoque".
A carne e a molhanga
Na base do prato está carne bovina, porventura com nervo entremeado, que pode ser um corte do pojadouro ou da alcatra. O tenrinho é uma qualidade, mas não a única, não a cimeira no bitoque, sendo certo que é possível termos o melhor dos dois mundos, na mesma peça: tenrura e nervo, conforto e colagénio. A prová-lo estão os dois primeiros classificados, os bitoques do Sem Palavras e da Adega Solar Minhoto.
Depois, nas gorduras da fritura, pode haver azeite, óleo, banha ou margarina, ou um cocktail deles todos – ou só de dois deles. Acresce alho em barda à molhanga (bitoque tem molhanga, não molho) e vinho branco para pegar fogo à peça e "abrir" os sabores. Nalgumas casas, darão um toquezinho de mostarda para espevitar tudo, noutras, em vez do vinho branco, entrará um licoroso mais potente, noutras ainda, aromatiza-se com louro, como no bife à portuguesa.
Em todo o caso, na essência do bitoque está muita molhanga. A molhanga é o seu cobertor, o que o torna um prato confortável e decadente. No bitoque, queremos uma poça espessa e espelhada, que vai escurecendo das bordas para o centro do prato. Os três finalistas desta prova revelaram-se todos dentro do cânone da molhanga, mas a Adega Solar Minhoto conseguiu uma ligeira vantagem sobre o Sem Palavras, neste particular, que, por sua vez, levou uma ligeira vantagem sobre o Jorge d’Amália.
Quanto à carne, deve fritar em lume alto e, para fritar, convém que estejamos a falar de carne fresca, devidamente desumidificada (o que não significa maturada, vade-retro), e de uma frigideira de ferro pesada como um tijolo. Por baixo da frigideira, por sua vez, deve estar um bico de fogo a sério, do tipo lança-chamas.
A carne e o seu ponto foram dos critérios que desclassificaram para o terceiro lugar o Jorge d’Amália, mítica tasquinha da Ajuda, especializada no prato e na decoração forrada a memorabilia do Clube de Futebol Os Belenenses. Na ronda final da prova, ocorrida a 7 de fevereiro, o bife do Jorge d’Amália surgiu esbranquiçado por fora, sem reações de Maillard (esse castanhinho saboroso), mais cozido do que frito, com o interior passado e seco.
Em matéria de carne, destacou-se a Adega Solar Minhoto, que usou uma peça da alcatra extraordinária, avantajada e cozinhada na perfeição. A Adega Solar Minhoto foi o único sítio onde entregaram o bife no ponto solicitado: médio-mal.
No Sem Palavras, por sua vez, marisqueira vizinha da Adega Solar Minhoto, encastrada no Mercado de Alvalade, o bife era do pojadouro e era belíssimo, cortado de peças grandes e limpas por quem sabe de veios e de poda. Macio, com um ligeiro interstício nervoso, surgiu só ligeiramente mais passado do que era suposto, mas, ainda assim, suculento.
O ovo e as batatas
Terceiro critério de avaliação: o ovo estrelado. O ovo estrelado não é um pormenor no bitoque (nem em coisa nenhuma). Um dos seis candidatos iniciais acabou por ficar de fora do trio de finalistas, por me ter servido um ovo estrelado deficiente. E o que é um ovo estrelado deficiente, num bitoque? É esse ovo de clara alva como a cal e gema intacta, redondinho e perfeito como a imagem de um mupi da McDonald's.
No bitoque, o ovo estrelado quer-se encarquilhado por uma fritura viva em gordura abundante e quer-se com a clara dourada. O ovo estrelado perfeito tem as bordas já escuras e espigadas, e a gema deve ser banhada com a molhanga alhenta e fervente do bitoque derramada por cima.
O ovo mais bem frito do trio foi o do Jorge d’Amália, seguindo-se o da Adega Solar Minhoto. O do Sem Palavras, na ronda final, mostrou-se apressado, sem as devidas notas caramelizadas.
Onde o Jorge d’Amália também conseguiu uma nota superior foi nas batatas fritas, palitos grossos e perfeitos, cortados à mão para dentro de um balde de plástico, como é da tradição. Dito isto, as batatas da concorrência eram, também elas, magníficas e domésticas, de fritura limpa, mais finas e uniformes no Sem Palavras, convencionais e disformes na Adega Solar Minhoto.
Azeitona boa, de salmoura e tempero tradicional: porque não?
Por fim, aquilo a que chamaria de adereços. Não são vitais, mas não os desconsideraria de todo. O debate é aceso, havendo gostos para tudo, incluindo para quem ache imperiosa a presença de cenoura ripada e alface em juliana.
Dispenso ambas, mas valorizo as azeitonas (as boas, de salmoura e tempero tradicional) e os picles, bem como um arrozinho branco para ensopar os sucos bifentos – três elementos presentes apenas no bitoque do Sem Palavras.
Outro campo onde o Sem Palavras ganha é no preço. O Jorge d’Amália tem o bitoque mais barato (9,50 euros). O do Sem Palavras, a 11,50 euros, apresenta a melhor relação qualidade-preço. O da Adega Solar Minhoto tem também um valor honesto, porque, custando 14 euros, serve uma peça de carne de alcatra de outro quilate, mais alta e mais ampla. Mas são 14 euros, e 14 euros, para bitoque, já está no limite do aceitável.
Em síntese, dois vencedores destacados: a Adega Solar Minhoto e o Sem Palavras. O mais delicioso, para mim, é o bitoque da Adega Solar Minhoto. Mas, se considerarmos adereços e preço (e eu considero), temos de eleger também o do Sem Palavras, de grande cuidado e competência. Se quiser provar os dois, é fácil. Num minuto, faz a viagem e poderá recriar a prova e tomar a decisão sobre o vencedor.
Os 10 mandamentos do bitoque
O prato do bitoque é recriado, por vezes, com uma liberdade criativa que o leva para fora de pé. Aqui se dá um contributo para estabelecer os cânones.
- Usarás cortes de carne bovina, fresca ou de maturação com menos de 15 dias, com algum nervo, como são a alcatra e o pojadouro.
- A carne será frita numa frigideira de ferro até ficar acastanhada, mas não pode passar do ponto médio-mal.
- O bife deve ser maior do que o ovo estrelado e apresentar uma altura entre os 6 e os 12 milímetros.
- As gorduras admitidas serão: óleo, azeite, banha e margarina (não hidrogenada). É aconselhada a sua utilização em combinação.
- Os alhos que temperam o molho serão dos frescos, com casca, batidos ou laminados. E serão muitos.
- O molho será refrescado com uma bebida alcoólica, de preferência vinho branco.
- Será admitida a introdução de um golpe de vinagre ou de mostarda, ou de um outro ingrediente distintivo, que não domine demasiado o molho.
- O ovo estrelado será servido sobre o bife e terá a base e os rebordos dourados, fruto de uma fritura viva. O ovo será terminado com a molhanga do bife por cima, bem quente.
- As batatas fritas do bitoque serão palitos cortados à mão, de apenas uma fritura. A fritura das batatas deve ser simples, em óleo limpo. As batatas podem ser servidas à parte ou em redor do bife.
- Os adereços admitidos no bitoque são: picles de couve-flor e cenoura, azeitonas de cura tradicional portuguesa, arroz branco (agulha ou carolino), alface em juliana e cenoura ripada.
Se gostou deste conteúdo, apoie a nossa missão
Somos a maior organização de consumidores portuguesa, na defesa dos seus direitos desde 1991. Acreditamos que Saber é Poder.A nossa independência só é possível através da sustentabilidade económica da atividade que desenvolvemos. Para mantermos esta estrutura a funcionar e levarmos até si um serviço de qualidade, precisamos do seu apoio.
Conheça a nossa oferta e faça parte da comunidade de Simpatizantes. Basta registar-se gratuitamente no site. Se preferir, pode subscrever a qualquer momento.
O conteúdo deste artigo pode ser reproduzido para fins não-comerciais com o consentimento expresso da DECO PROTeste, com indicação da fonte e ligação para esta página. Ver Termos e Condições. |