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Os melhores restaurantes de bitoque em Lisboa

Durante muitos anos, foi visto como um prato menor, tantas vezes uma opção fora da carta. Mas a febre do bitoque está em alta. O crítico gastronómico Ricardo Dias Felner, bitoqueiro assumido, chegou a três finalistas, fez uma última prova e diz quem ganhou.

  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
27 março 2024
  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
bitoque, bife de vaca com ovo estrelado e muito molho servido no prato em restaurante

Ricardo Dias Felner

Primeiro esclarecimento: o conceito de bitoque proíbe luxos. Ou seja, esqueça os bitoques de chef, esqueça os bitoques do lombo e da vazia, os guarnecidos com foie gras ou polvilhados com flor de sal. Todos foram aqui desconsiderados. Bitoque é comida de restaurante popular, de tasca ou de cervejaria. Bitoque é a alternativa gulosa para quando falta verba para o bife.

O segundo esclarecimento tem que ver com a circunscrição geográfica. Há bons bitoques por todo este Portugal, mas em Lisboa estão mais disseminados. Em nenhuma outra cidade há tantas casas a fazê-los, tanta competição, tanto entusiasmo a comê-los. Se quisermos fechar ainda mais o foco, arrisco dizer que, dentro de Lisboa, é no bairro de Alvalade que mais cozinheiros o praticam, há mais tempo. Há uns 40 anos, lembro-me de ir, pela mão do meu pai, ao alvaladense Tico Tico, comer o melhor bitoque de Lisboa. Do Tico Tico, nessa altura, ainda uma pequena tasquinha, sairiam muitos cozinheiros e empregados de mesa que se foram espalhando por cervejarias e marisqueiras vizinhas, como o Pirilampo ou o Sem Palavras. Talvez por isso, dois dos finalistas desta lista ficam em Alvalade, a 200 metros de distância um do outro.

Bitoque com história criativa

Hoje, dir-se-ia que alguns filhos superaram os pais, mas a receita terá a mesma inspiração. E qual é a receita? As variações do bitoque são muitas, talvez porque falte um registo escrito fidedigno sobre a autoria. As teorias sobre a origem abundam, sendo uma delas a de que o prato tem inspiração numa espécie de almôndega vinda da Rússia, conhecida por bitok, que acompanha com natas ácidas.

Menos rebuscada parece a ideia de que terá sido um imigrante galego, de apelido Bitoque, a trazer a receita para Lisboa. A minha teoria preferida é a que encontrei algures numa caixa de comentários da internet, e que diz o seguinte: sendo o bitoque "um bife com ovo a cavalo, e, como a parte da gema lembra um toque, aquele capacete redondinho de equitação, bife mais toque igual a bitoque".

A carne e a molhanga

Na base do prato está carne bovina, porventura com nervo entremeado, que pode ser um corte do pojadouro ou da alcatra. O tenrinho é uma qualidade, mas não a única, não a cimeira no bitoque, sendo certo que é possível termos o melhor dos dois mundos, na mesma peça: tenrura e nervo, conforto e colagénio. A prová-lo estão os dois primeiros classificados, os bitoques do Sem Palavras e da Adega Solar Minhoto.

Depois, nas gorduras da fritura, pode haver azeite, óleo, banha ou margarina, ou um cocktail deles todos – ou só de dois deles. Acresce alho em barda à molhanga (bitoque tem molhanga, não molho) e vinho branco para pegar fogo à peça e "abrir" os sabores. Nalgumas casas, darão um toquezinho de mostarda para espevitar tudo, noutras, em vez do vinho branco, entrará um licoroso mais potente, noutras ainda, aromatiza-se com louro, como no bife à portuguesa.

Em todo o caso, na essência do bitoque está muita molhanga. A molhanga é o seu cobertor, o que o torna um prato confortável e decadente. No bitoque, queremos uma poça espessa e espelhada, que vai escurecendo das bordas para o centro do prato. Os três finalistas desta prova revelaram-se todos dentro do cânone da molhanga, mas a Adega Solar Minhoto conseguiu uma ligeira vantagem sobre o Sem Palavras, neste particular, que, por sua vez, levou uma ligeira vantagem sobre o Jorge d’Amália.

Quanto à carne, deve fritar em lume alto e, para fritar, convém que estejamos a falar de carne fresca, devidamente desumidificada (o que não significa maturada, vade-retro), e de uma frigideira de ferro pesada como um tijolo. Por baixo da frigideira, por sua vez, deve estar um bico de fogo a sério, do tipo lança-chamas.

A carne e o seu ponto foram dos critérios que desclassificaram para o terceiro lugar o Jorge d’Amália, mítica tasquinha da Ajuda, especializada no prato e na decoração forrada a memorabilia do Clube de Futebol Os Belenenses. Na ronda final da prova, ocorrida a 7 de fevereiro, o bife do Jorge d’Amália surgiu esbranquiçado por fora, sem reações de Maillard (esse castanhinho saboroso), mais cozido do que frito, com o interior passado e seco.

Em matéria de carne, destacou-se a Adega Solar Minhoto, que usou uma peça da alcatra extraordinária, avantajada e cozinhada na perfeição. A Adega Solar Minhoto foi o único sítio onde entregaram o bife no ponto solicitado: médio-mal.

No Sem Palavras, por sua vez, marisqueira vizinha da Adega Solar Minhoto, encastrada no Mercado de Alvalade, o bife era do pojadouro e era belíssimo, cortado de peças grandes e limpas por quem sabe de veios e de poda. Macio, com um ligeiro interstício nervoso, surgiu só ligeiramente mais passado do que era suposto, mas, ainda assim, suculento.

O ovo e as batatas

Terceiro critério de avaliação: o ovo estrelado. O ovo estrelado não é um pormenor no bitoque (nem em coisa nenhuma). Um dos seis candidatos iniciais acabou por ficar de fora do trio de finalistas, por me ter servido um ovo estrelado deficiente. E o que é um ovo estrelado deficiente, num bitoque? É esse ovo de clara alva como a cal e gema intacta, redondinho e perfeito como a imagem de um mupi da McDonald's.

No bitoque, o ovo estrelado quer-se encarquilhado por uma fritura viva em gordura abundante e quer-se com a clara dourada. O ovo estrelado perfeito tem as bordas já escuras e espigadas, e a gema deve ser banhada com a molhanga alhenta e fervente do bitoque derramada por cima.

O ovo mais bem frito do trio foi o do Jorge d’Amália, seguindo-se o da Adega Solar Minhoto. O do Sem Palavras, na ronda final, mostrou-se apressado, sem as devidas notas caramelizadas.

Onde o Jorge d’Amália também conseguiu uma nota superior foi nas batatas fritas, palitos grossos e perfeitos, cortados à mão para dentro de um balde de plástico, como é da tradição. Dito isto, as batatas da concorrência eram, também elas, magníficas e domésticas, de fritura limpa, mais finas e uniformes no Sem Palavras, convencionais e disformes na Adega Solar Minhoto.

Azeitona boa, de salmoura e tempero tradicional: porque não?

Por fim, aquilo a que chamaria de adereços. Não são vitais, mas não os desconsideraria de todo. O debate é aceso, havendo gostos para tudo, incluindo para quem ache imperiosa a presença de cenoura ripada e alface em juliana.

Dispenso ambas, mas valorizo as azeitonas (as boas, de salmoura e tempero tradicional) e os picles, bem como um arrozinho branco para ensopar os sucos bifentos – três elementos presentes apenas no bitoque do Sem Palavras.

Outro campo onde o Sem Palavras ganha é no preço. O Jorge d’Amália tem o bitoque mais barato (9,50 euros). O do Sem Palavras, a 11,50 euros, apresenta a melhor relação qualidade-preço. O da Adega Solar Minhoto tem também um valor honesto, porque, custando 14 euros, serve uma peça de carne de alcatra de outro quilate, mais alta e mais ampla. Mas são 14 euros, e 14 euros, para bitoque, já está no limite do aceitável.

Em síntese, dois vencedores destacados: a Adega Solar Minhoto e o Sem Palavras. O mais delicioso, para mim, é o bitoque da Adega Solar Minhoto. Mas, se considerarmos adereços e preço (e eu considero), temos de eleger também o do Sem Palavras, de grande cuidado e competência. Se quiser provar os dois, é fácil. Num minuto, faz a viagem e poderá recriar a prova e tomar a decisão sobre o vencedor.

Os 10 mandamentos do bitoque

O prato do bitoque é recriado, por vezes,  com uma liberdade criativa que o leva para fora de pé. Aqui se dá um contributo para estabelecer os cânones.

  1. Usarás cortes de carne bovina, fresca ou de maturação com menos de 15 dias, com algum nervo, como são a alcatra e o pojadouro.
  2. A carne será frita numa frigideira de ferro até ficar acastanhada, mas não pode passar do ponto médio-mal.
  3. O bife deve ser maior do que o ovo estrelado e apresentar uma altura entre os 6 e os 12 milímetros.
  4. As gorduras admitidas serão: óleo, azeite, banha e margarina (não hidrogenada). É aconselhada a sua utilização em combinação.
  5. Os alhos que temperam o molho serão dos frescos, com casca, batidos ou laminados. E serão muitos.
  6. O molho será refrescado com uma bebida alcoólica, de preferência vinho branco.
  7. Será admitida a introdução de um golpe de vinagre ou de mostarda, ou de um outro ingrediente distintivo, que não domine demasiado o molho.
  8. O ovo estrelado será servido sobre o bife e terá a base e os rebordos dourados, fruto de uma fritura viva. O ovo será terminado com a molhanga do bife por cima, bem quente.
  9. As batatas fritas do bitoque serão palitos cortados à mão, de apenas uma fritura. A fritura das batatas deve ser simples, em óleo limpo. As batatas podem ser servidas à parte ou em redor do bife.
  10. Os adereços admitidos no bitoque são: picles de couve-flor e cenoura, azeitonas de cura tradicional portuguesa, arroz branco (agulha ou carolino), alface em juliana e cenoura ripada.

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