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O melhor leitão da Bairrada: roteiro de restaurantes

O assunto é muito sério, e o crítico gastronómico Ricardo Dias Felner fez-se acompanhar de um provador antigo e experiente. Contra as previsões da comunidade gastronómica, o troféu foi para a casa da especialidade mais antiga da Bairrada.

  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
29 novembro 2023
  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
Travessa de leitão assado com pele estaladiça, rodelas de laranja e batatas fritas

Ricardo Dias Felner

Para a última etapa da prova, socorri-me de um reforço. O meu sogro é conhecido por ser o maior glutão de bacorinhos da família. São épicas as prestações ao longo dos anos, sobretudo a da festa dos seis anos da neta, ocasião em que ingeriu duas dezenas de pedaços de costela em pouco mais de meia hora – recorde mundial da modalidade, caso o Guinness andasse atento. Liguei-lhe de véspera, e nem o alerta laranja para o País, devido a tempestades e vendavais, o demoveu da odisseia. Três leitões em três restaurantes. Em três horas. Aceita? "Vamos a isso", respondeu do outro lado.

No dia seguinte, arrancámos de Lisboa pelas 10 da manhã. O plano era ambicioso. Já o tinha testado antes, com o frango da Guia e com as tripas à moda do Porto. Mas havia aqui um suplemento de gordura e colesterol que podia tornar o desafio perigoso. Durante a viagem, falámos sobre os critérios de avaliação. À cabeça, a pele. Leitão da Bairrada deve ter a pele vidrada e estaladiça. Mas há outras características importantes: o nível da tosta e o sabor. Peles clarinhas têm menos reações de Maillard, menos complexidade, menos aroma. E notas a ranço podem, desde logo, indicar problemas com a qualidade do bicho ou simples falta de tempero. 

Depois, a carne em si. A febra deve manter a humidade, ser tenra, sem que isso seja feito à custa de gordura excessiva ou enjoativa, típica de matéria-prima fajuta.

Leitão bísaro ou cruzado

Aqui entra outro fator crucial: a genética do bicho. Há anos que a Confraria Gastronómica do Leitão da Bairrada lança alertas sobre a ameaça à iguaria bairradina, devido ao facto de estarem a ser usadas raças indevidas, de origens longínquas. Segundo o cânone, o leitão da Bairrada deve ser de suíno bísaro, de fisionomia longilínea, com mais costela e menos carne, ou, no limite, de bísaro cruzado com outras raças. 

A procura e a ganância ditaram, todavia, que se tivesse passado a importar leitões de lugares como Polónia, Espanha, Croácia ou China, em carcaça e congelada, quase sempre recorrendo a animais grandes, como são o Large White e o Landrace. Há uma década, escrevi sobre o assunto. Na altura, falei com pessoas ligadas ao setor, entre produtores e restauradores, e todos admitiram o problema. Resultaram duas conclusões. A primeira é que já ninguém usará leitão bísaro puro: é mais ou menos consensual que o bísaro puro tem excesso de gordura. A segunda é que o formato perfeito – aquele que dá o melhor rácio entre carne, pele e sabor – é o do cruzamento do bísaro com porcos ditos brancos. Mesmo restaurantes Michelin, como o The Yeatman (duas estrelas), em Vila Nova de Gaia, célebre pelo prato de leitão, usam bísaro cruzado, por esta razão. 

O bísaro cruzado pode chegar ao dobro do preço dos leitões industriais comuns e, mesmo algumas das casas mais respeitadas, em certos momentos, em certos fins de semana, recorrem a matéria-prima de pior qualidade. Daqui resulta que uma das grandes dificuldades em dizer qual é o melhor leitão da Bairrada é esta: falta de consistência. A mesma casa pode servir leitão do bom à quinta-feira e leitão do mau ao domingo. Mas, fora o bacorinho, é preciso atentar noutros pormenores, como o acompanhamento. "As batatas são importantes", notou o meu sogro, na subida para a serra de Montejunto, as nuvens a baterem no para-brisas como chapadas na cara. "E a salada, claro. Se for de alface de pacote, chumba." O meu sogro é exigente com a alface.

A idade é um posto?

A viagem teve sobressaltos, bátegas de água que não chegaram para nos travar o apetite. À chegada à Mealhada, o céu tornou-se mais claro, o ar ficou limpo e fresco, e o vento amansou, de repente. De ambos os lados da N1, viam-se os grandes templos do leitão, alguns já devolutos, arruinados pela autoestrada e pelas sucessivas crises. 

Ainda assim, a Mealhada continua a estar para o leitão como a Guia, no Algarve, para os frangos. A paisagem de moradias com néons de bácoros, entre o tétrico e o infanto-juvenil, normalizou-se. E um dos restaurantes responsáveis por isso estava ali à nossa frente.

Como planeado, pelas 12 horas, em ponto, dávamos entrada no Pedro dos Leitões. Fundado em 1941 por Álvaro Pedro, foi a primeira casa a instituir o leitão como prato emblemático da restauração da vila. Constituiu-se como uma referência nacional, não apenas por causa dos porquinhos. Nos programas de Maria de Lourdes Modesto, na RTP, nos anos 1970 e 1980, o Pedro aparecia com outros pratos regionais, tudo feito a preceito. 

O restaurante modernizou-se na medida certa, com a descendência familiar na liderança. A casa mantém a aura clássica, com o interior em madeiras escuras, mas há pequenos apontamentos de design, feitos com bom gosto, como o da garrafeira iluminada a servir de portal da sala principal. 

O serviço foi rápido, ainda a casa vazia, com a particularidade de podermos pedir (e pagar) à parte a salada e as batatas. "Um dia, vim aqui e pedi só leitão. A senhora ficou a olhar para mim, admirada", confessou, orgulhoso, o meu sogro, ciente de que o ouro está na carnucha. E estava. 

O leitão do Pedro foi incomparável. A maioria dos gastrónomos e críticos não o elegeria, atualmente. Do trio de finalistas, seria o mais desqualificado à partida. De alguma forma, nos últimos anos, outras casas ganharam terreno, pelo menos, no que à imprensa da especialidade diz respeito.

Ora, a realidade – a 19 de outubro de 2023 – trataria de contradizer as expectativas. Assim que a travessa pousou na mesa, comprovou-se a excelência da assadura, a pele castanho-escura a despegar-se da carne; na boca, crocância, depois a febra elegante, com a pimenta e o sal certos, quer na costela, quer nos pedaços mais carnudos. 

"Vai ser difícil bater isto", concluí, observação corroborada pelo segundo jurado, que notou a limpeza do óleo das batatas, estaladiças e secas, bem como a diversidade da salada, com couve-roxa e cenoura intrometidas na alface. 

O Rei foi nu

Sem tempo a perder, rumámos ao segundo restaurante. O Rei dos Leitões ficava a um minuto de distância. Às 12h45, estávamos sentados, mesmo sem reserva. Aqui, come-se por ordem de chegada.

A inclusão do restaurante no trio de finalistas teve por base uma visita antes do verão, muito feliz. Acresce que estamos perante um ovni, conhecido por trazer o fine dining para a Bairrada, bem como por ter uma das grandes garrafeiras do País. Tudo verdade, e acrescento que, dentro de um estilo exuberante, a decoração é confortável, dando a sensação de estarmos num pequeno restaurante, e não num casarão para 300 pessoas. 

Desta vez, no entanto, no que respeita à cozinha, as medalhas caíram. Mesmo tendo explicado que teríamos outro almoço a seguir, estando o restaurante vazio, fomos forçados a pedir duas doses. Uma seguiu para o take away, em caixinhas cheias de coroas, pagas de acordo, a outra veio para a mesa.

Notas de prova: o leitão chegou amolecido e batido, a pele molhada; e as batatas, sendo caseiras, tinham ligeiras notas a mofo e excesso de óleo. Quanto à salada, estava bem temperada, folhas viçosas, a cebola a espevitar o conjunto. O vencedor não estaria aqui. Mas faltava uma etapa. E que etapa.

Uma estrela na Fogueira

O Mugasa fica fora da Mealhada, em Fogueira, perto de Sangalhos, a 16 minutos do Rei dos Leitões. Por esta altura, já tínhamos o estômago satisfeito, mas continuávamos entusiasmados. O Mugasa tem sido considerado pelos especialistas o melhor leitão do País. O seu chef, Ricardo Nogueira, é convidado para congressos, e visto como símbolo da nova geração de assadores. Em parte, isso deve-se à técnica que utiliza. Ao contrário da maioria, Ricardo Nogueira começa por usar temperaturas mais baixas para cozer o leitão e, só no fim, lhe dá a tosta. A maioria das casas faz o contrário: primeiro, usa o forno alto, depois baixa. Teoricamente, o Mugasa consegue, assim, uma carne mais suculenta, sem perder a pele estaladiça. A ideia está em linha com os últimos estudos da ciência gastronómica, que contrariam a ideia, muito difundida até há pouco tempo, de que "selar" primeiro a carne ajuda a conter os sucos no interior. Isto era a teoria. Faltava ver, na prática.

O Mugasa só aceita reservas via telefone, mas, quando marquei, perguntaram-me logo: "Vai comer leitão?" É que o restaurante tem outros pratos afamados, nomeadamente de bacalhau, e uma cabidela igualmente especial. A pergunta servia também para garantir que não iria faltar porquinho, mesmo que o cliente chegasse pelas 14 horas.

Adiantados relativamente ao programa, conseguimos chegar antes. Pelas 13h45, fez-se o pedido. No Mugasa, servem-se leitões inteiros, em metades e em quartos, e são uma maravilha. Em nenhum sítio se corta com a delicadeza e o rigor impostos por Ricardo Nogueira. O puzzle, quando os bichos vêm inteiros para a mesa, é uma obra de arte, quadradinhos mínimos que se vão retirando como pequenos bombons.

Desta vez, fomos pela meia dose, quase só pedaços da costela. A costela está para o leitão como a perna está para o frango: todos as querem. Febra fina, saborosa e húmida, mais alourada do que castanha, grossinha, com uma camada fina de gordura agarrada. "Ui, não sei", comentou o meu sogro, deixando-me com a batata quente nas mãos.

As batatas do Mugasa também são ótimas, mas, ainda assim, um ponto abaixo das do Pedro dos Leitões. Quanto à salada, está dentro do standard: alface e cebolas frescas, bem temperadas. E o serviço também foi simpático e eficiente (preciosa a sugestão para terminar com uma rodela de ananás com lima, apropriada ao desfecho da contenda).

Contra as previsões, incluindo a minha, a decisão acabou por pender para o Pedro dos Leitões. O leitão do Pedro, neste dia, estava mais fino e saboroso. Neste dia, o leitão do Pedro conseguiu um equilíbrio raro entre a crocância da pele, assada no ponto perfeito, e a carne, suculenta sem ser enjoativa. Que portento! De resto, fora o leitão, também foi o Pedro quem pontuou mais nos outros itens. Se é assim sempre? Duvido. Se o Mugasa é mais regular, como alguns apregoam? É possível. Para averiguar, com certeza, precisaria não de um sogro, mas de vinte. De preferência, sem colesterol.

À noite, já de regresso a Lisboa, telefonei a saber da sua saúde. Estava a chá, mas estava bem. Mal pode esperar pela prova das chanfanas.

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