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Museu Nacional de Arte Antiga: roteiro pelos tesouros de Portugal

Embarque numa caça ao tesouro da qual sairá rico em saber e encantamento. As gemas preciosas são peças classificadas como tesouro nacional, o baú é o Museu Nacional de Arte Antiga. Nós damos o mapa e, claro, o xis marca sempre o lugar.

27 setembro 2023
Conservação e restauro dos Painéis de São Vicente, obra atribuída ao pintor quatrocentista Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga

João Ribeiro

Ano de 1690. Os Painéis de São Vicente, presumivelmente saídos da oficina de mestre Nuno Gonçalves dois séculos antes e que retratam as elites do Portugal quatrocentista, deixam a capela-mor da Sé, para darem lugar a uma obra ao gosto da época. O gesto tê-los-á salvado da destruição, quando, em 1755, um violento terramoto esventra Lisboa das fundações até ao recorte dos edifícios. O retábulo que os substitui, estrutura de madeira a dar suporte a uma sequência de pinturas, é irremediavelmente atingido.

Ao abandonarem a Sé, os Painéis de São Vicente são desmontados e encaminhados para a Mitra Patriarcal. No século XIX, aparecem no Paço de São Vicente de Fora, também em Lisboa. Na centúria seguinte, é o pintor José de Almada Negreiros quem ordena os painéis que sobreviveram a todas estas mudanças segundo a sequência que conhecemos. Mas trata-se de uma interpretação. Ninguém sabe quantos eram, nem qual a ordem original. Tão-pouco conhecemos a identidade das figuras representadas, com a exceção de Vicente, o mártir cujos restos mortais D. Afonso Henriques mandou recuperar naquele que hoje é conhecido como Cabo de São Vicente, na vigência de um acordo de paz por cinco anos com os muçulmanos, entre 1173 e 1178. Também restam cada vez menos dúvidas quanto ao infante D. Henrique, pois a Crónica da Guiné, obra encomendada por D. Afonso V a Gomes Eanes de Zurara e que se encontra na Biblioteca Nacional de França, contém uma iluminura que o traça de igual feição. É tudo.

São mais as hesitações do que as certezas. O que se conhece é a genialidade de Nuno Gonçalves e daqueles que terão assistido o mestre no término de uma obra que levou anos. Tantos, que o jovem cavaleiro que surge junto ao infante era uma criança quando a empresa arrancou. Como sabemos?

A campanha de conservação e restauro dos painéis, que estará previsivelmente concluída no final de 2024, revelou imagens, obtidas por infravermelhos e radiografia, das camadas mais profundas da pintura. Nelas jazem as opções iniciais do artista – desenhos ou cores que depois foram abandonados e cobertos de tinta. Nelas o cavaleiro era um menino, e o infante cingia um braço à volta do seu ombro. E o manto de São Vicente, hoje escarlate, exibia um luxuriante tom de azul.

O restauro é um pretexto para visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, até porque os técnicos trabalham num compartimento envidraçado, acessível ao olhar alheio. Mas há milhares de gemas nesta arca de tesouros. Selecionámos seis peças para levá-lo numa viagem desde os primórdios de Portugal até à chegada das naus ao Japão.

Fotos: João Ribeiro.

Circulação de obras por museus

São cerca de 80 mil peças, mas só três mil estão expostas, neste museu que nada deve, em qualidade do espólio, ao francês Louvre, ao espanhol Prado ou à britânica National Gallery. A título de curiosidade, só em 2022, o Museu Nacional de Arte Antiga emprestou 13 obras ao Louvre e, ainda este ano, as Tentações de Santo Antão, obra de Jerónimo Bosch, esteve exposta no Palácio Sforza, em Milão. Aliás, já tinha participado, em 2016, na mostra que marcou os 500 anos da morte do artista, no Prado, em Madrid.

Mesmo assim, explica João Pedro Feteira, historiador de arte e técnico superior do Museu Nacional de Arte Antiga, estas obras icónicas viajam apenas a título excecional, para não defraudar as expectativas de quem as procura em Lisboa. E há peças que nunca deixam o museu, para não prejudicar a leitura das coleções. É o caso dos Painéis de São Vicente, património cultural dos portugueses. "Não é de um dono qualquer, é do nosso país, é nosso", sublinha.

Mapa do tesouro

 

Fotos: 1, 2 e 4. © Luísa Oliveira | DGPC/ADF; 3 e 6. © Luísa Oliveira/José Paulo Ruas | DGPC/ADF; 5. © José Pessoa | DGPC/ADF.

Encomendas de reis abastados

É também na companhia de João Pedro Feteira que percorremos as seis obras, a começar pela cruz processional, em ouro e pedras preciosas, que D. Sancho I mandou fazer, por testamento, e para a qual deixou os recursos ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. A peça só estaria concluída em 1214, três anos após a morte do filho de D. Afonso Henriques. Safiras, granadas e pérolas ornam uma peça cujo centro era pontuado por uma relíquia: um fragmento que a tradição diz ter pertencido ao Santo Lenho, ou seja, à cruz de Cristo. O pedaço era propriedade do conde D. Henrique, avô de Sancho, que é possível ter participado nas cruzadas contra os muçulmanos, na Terra Santa, onde Jesus foi crucificado. A relíquia perdeu-se, tanto quanto se sabe, roubada. O comércio de relíquias – muitas vezes, tráfico e falsificação – era comum na Idade Média.

Tocante, para João Pedro Feteira, é a sobrevida desta peça com mais de 900 anos, que poderia ter sido fundida para financiar campanhas militares. A fronteira entre o reino de Portugal e os potentados muçulmanos era extremamente instável, e muitos objetos, dos quais alfaias religiosas como cálices, conheceram idêntico fim. Mas D. Sancho I tinha vasta fortuna, para a qual terão contribuído campanhas contra os muçulmanos, como a que atingiu Sevilha em 1178, em violação, por alguns meses, do tratado de paz que permitiu a recuperação dos restos mortais de São Vicente.

Avançamos dois séculos e meio, até ao reinado de D. Afonso V, "um rei que encomendava muito", como explica o historiador de arte. Não podemos deixar de relacionar esta condição com as campanhas militares em África e a exploração das suas riquezas, que faziam do monarca um homem abastado. A cadeira de Estado é uma peça talhada em carvalho por volta de 1470, com decorações a lembrar janelas do Mosteiro da Batalha, e que provém do mosteiro franciscano de Santo António do Varatojo, em Torres Vedras, fundado pelo soberano. Trata-se de um dos mais antigos exemplos de mobiliário produzido em Portugal, e a sua guarda pelos monges do Varatojo está associada ao prestígio resultante desse patrocínio régio.

Deve-se ainda a D. Afonso V a encomenda do retábulo dos Painéis de São Vicente. João Pedro Feteira chama-nos a atenção para a fisionomia das figuras. Enquanto o mártir ostenta um rosto iluminado e sem mácula, para sempre jovem e perfeito, as demais assumem uma expressão realista, com rugas e esgares, como se de retratos psicológicos se tratasse. E, embora da elite, nem todas trajam vestes igualmente abastadas. Nesta época, o conceito de elite não estava necessariamente associado a riqueza, mas a funções na sociedade: letrados, clérigos, nobres, etc.

Um homem no deserto, sozinho com a sua mente

Desconhece-se o momento em que chegou à posse da coroa de Portugal. Há quem defenda ter sido o historiador, humanista e diplomata Damião de Góis quem terá inicialmente adquirido as Tentações de Santo Antão – obra do pintor Jerónimo Bosch –, durante a sua estada na Flandres, na primeira metade do século XVI. Dois séculos depois, reemergiu no Palácio das Necessidades, em Lisboa, descoberta pelo rei D. Fernando II, marido de D. Maria II. Não se sabe por onde andou nesse intervalo, mas é possível que tenha circulado pelo estrangeiro. Hoje, é das peças que mais visitantes atraem ao Museu Nacional de Arte Antiga, pela maravilhosa estranheza que suscita.

Quem contempla as Tentações de Santo Antão poderá sentir-se também tentado a ver aqui traços da pintura surrealista. "Mas só quem nunca viu um bestiário medieval", exclama João Pedro Feteira. Estes livros manuscritos continham representações de animais, reais ou imaginários: cabeça de um, corpo ou patas de outro, ou qualquer combinação que ajudasse a transmitir valores ou atitudes centrais no Cristianismo.

E é esse imaginário medieval, já no Renascimento, que surge em Bosch. O pintor oferece-nos a experiência de um santo que se faz eremita, para se purificar das falhas do mundo. Santo Antão está sozinho no deserto, mas é tentado pelo demónio, e a mente devolve-lhe caos, destruição, luxúria, castigo e dor, na forma de criaturas fantásticas. No centro da pintura, um Cristo iluminado sugere que a ordem e a salvação advêm de Jesus crucificado.

Uma era de novos mundos

A fonte bicéfala, talhada em calcário entre 1501 e 1515, é outra peça que causa estranheza. A cabeça da rainha D. Leonor de Lencastre, viúva de D. João II, entrelaça-se com a do seu irmão, o rei D. Manuel I, por meio de uma coluna coberta de escamas, a lembrar uma serpente. Associada ao mal pelo Cristianismo, a serpente é também, como lembra João Pedro Feteira, símbolo da medicina e do antídoto contra o veneno – daí poder constituir uma alegoria para a purificação trazida pela água.

Acredita-se que a obra, que seria a peça central de uma fonte, terá sido encomendada por D. Leonor, a mais rica das princesas europeias e que ascendeu ao trono no apogeu das explorações marítimas. Foi no reinado de D. João II que as naus portuguesas dobraram o Cabo das Tormentas, hoje na África do Sul. Mas não será de descartar que D. Manuel I tenha também apoiado a encomenda da obra.

Depois da morte do marido, Portugal chegou à Índia e ao Brasil, e D. Leonor manteve fortuna, terras e poder na corte do irmão, que ajudou a elevar ao trono. Não se sabe a que edifício terá pertencido a fonte bicéfala, mas dá-nos testemunho de uma figura que patrocinou as artes e a arquitetura, e deixou obra assistencial. Não só fundou a Santa Casa da Misericórdia e as Caldas da Rainha, com o seu hospital termal, como apoiou D. Manuel na criação do Hospital de Todos-os-Santos, no Rossio, o qual iria sucumbir à ira telúrica que devorou Lisboa em 1755.

A nossa viagem termina às margens de Nagasáqui. O museu possui dois pares de Biombos Namban, que traduzem o encontro dos portugueses com o Japão de meados do século XVI. Produzidos pela Escola de Kano, são decorados com pintura sobre papel e folha de ouro: foram encontrados na década de 1930, no castelo de um senhor feudal (daimyo), perto de Osaca, e oferecidos ao embaixador português. Em conjunto, como sublinha João Pedro Feteira, formam uma narrativa sobre a saída das naus portuguesas de Goa, na Índia, a sua navegação no oceano, a chegada ao porto de Nagasáqui e o desembarque dos homens e das suas mercadorias.

No primeiro biombo da série, mulheres indianas, num plano superior, observam a azáfama de quem se prepara para levantar âncora. Homens fazem fluir mercadorias para a nau, que, no quarto biombo, serão desembarcadas no Japão. Os habitantes tomam-se de espanto ao contemplarem a fisionomia, as vestes e os modos dos forasteiros a que passaram a chamar namban jin, ou "bárbaros do Sul". Os portugueses.

Informações úteis

Pode visitar sozinho ou marcar visita guiada, com antecedência: preencha o formulário. Como existem milhares de peças, o melhor é orientar a temática. O site tem sugestões de roteiros (por exemplo, para uma ou quatro horas). A nossa sugestão? Peça que o guiem pelas seis obras destacadas no artigo.

Preços

Ao marcar a visita guiada, peça orçamento consoante o número de pessoas. Há descontos para jovens, seniores e famílias, e pode comprar online. O museu é grátis ao domingo e feriados, e fecha à segunda.

Como chegar

Em Lisboa, tem à disposição vários transportes públicos:

  • para a Rua das Janelas Verdes, autocarros 713, 714 e 727;
  • se sair na Av. 24 de Julho, autocarros 728, 732 e 760 e elétricos 15E e 18E;
  • ficando no Largo de Santos, elétrico 25E.

Alojamento

O custo mínimo de duas noites em hotel de quatro estrelas, para duas pessoas, é de 275 euros. Os preços foram recolhidos online, a 30 de agosto, para estada entre 27 e 29 de outubro, em hotéis até dois quilómetros do museu. Incluem pequeno-almoço.

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