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Liliana Gonçalves: "Não é o estatuto do cuidador informal que desejávamos"

Subsídios irrisórios, que chegam apenas a cerca de quatro mil cuidadores, num universo de 13 500 reconhecidos. Falta de descanso. Erros processuais e dificuldades de entendimento da lei, que indeferem muitos pedidos. Exigência de grau de parentesco e residência comum. Reclamações diárias. O estatuto do cuidador não é o que deveria ser, critica a presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais.

19 junho 2023
Liliana Gonçalves - presidente da associação nacional de cuidadores informais

Jorge Simão

Técnica de reabilitação psicomotora, na Cáritas Arquidiocesana de Évora, Liliana Gonçalves preside à Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI), que tem desempenhado um papel vigilante na definição do estatuto do cuidador informal. Na adolescência, foi cuidadora da avó.

Temos o estatuto do cuidador informal que tanto se desejou?

Infelizmente, não é o estatuto que gostaríamos que estivesse em vigor. E, desde que foi alargado ao nível nacional, pouca coisa mudou. Temos cuidadores com acesso a um subsídio de apoio, de valor muito baixo. Está nos 292,45 euros. Os valores médios são francamente baixos, para quem cuida. Não fazem face às despesas que as pessoas têm, no dia-a-dia, no cuidar. Consideraríamos mais justo se o valor pudesse situar-se entre o indexante dos apoios sociais e o salário mínimo nacional. Além disso, que este subsídio chegasse a todos os cuidadores informais. Só uma pequenina parte tem acesso à medida. Estão 13 500 reconhecidos e só cerca de quatro mil têm acesso ao subsídio.

Por causa dos critérios económicos de elegibilidade?

Sim. É considerada a condição de recursos [financeiros]. A partir daí, muitos cuidadores vão ficar de fora das medidas de apoio. Defendemos que todos deveriam ter acesso.

Na altura dos projetos-piloto, em 2020, falava-se na necessidade de simplificar o processo. Verificou-se?

Houve simplificação, mas ainda não o suficiente, porque envolve muita burocracia. Muitas pessoas, à partida, sabem que não vão ter acesso a medidas de apoio, porque não têm complementos por dependência, nem subsídio de assistência a terceira pessoa. E isso tem de ser tratado antes do pedido do estatuto. Muitos cuidadores não tratam destes pedidos, o que leva a que não peçam o estatuto. E continua a não haver uma campanha de informação abrangente. A Segurança Social fez um vídeo, mas pouco mais existe. A informação alargada poderia ser feita através da distribuição de folhetos, e com o envolvimento da rádio e da televisão. Seria muito importante para divulgar as medidas do estatuto.

Identificaram já as principais dificuldades dos cuidadores durante o pedido do reconhecimento do estatuto? Chegam muitas queixas?

Sim, diariamente. Temos uma linha de apoio ao cuidador informal. E, por e-mail, chegam-nos, pelo menos, duas queixas por dia. Têm que ver com erros no processo, ou dificuldades de entendimento da lei pelos técnicos que atenderam. A interpretação da lei de alguns locais faz com que haja mais indeferimentos. Do que nos temos apercebido, na região norte há mais indeferimentos do que noutras. 

Refere-se a algum critério da lei em particular?

Muitas vezes, tem que ver com a condição de recursos, com os rendimentos tidos em conta no cálculo do estatuto e também com o RSI [rendimento social de inserção]. Alguns locais entendem que é incompatível, outros não. Por isso, há pessoas a receber cartas a pedir a devolução dos valores que lhes foram pagos, porque [quem analisou o processo] considerou que o RSI não era incompatível com o estatuto do cuidador informal. Efetivamente, estivemos a ver com a advogada, e podem pedir a restituição. A pessoa não pode receber RSI e estatuto do cuidador informal ao mesmo tempo.

Mantém-se a necessidade de cuidador e pessoa cuidada viverem na mesma casa e de haver um grau de parentesco…

Sim. Continuamos a ter uma fatia significativa de cuidadores informais que, por esta lei, não se enquadram, não poderão ser reconhecidos. São os vizinhos, os amigos ou outras pessoas-referência que a própria pessoa cuidada indique para cuidador informal. Portanto, essas pessoas vão ficar sempre de fora do estatuto, tal como está.
Continuamos com uma iniciativa legislativa de cidadãos, a pedir alteração ao estatuto do cuidador informal. Temos tido dificuldade em recolher assinaturas, porque, para a sociedade civil, foi criado um estatuto e, aparentemente, existem apoios para os cuidadores informais. E estão na lei, mas não passam do papel. Temos dificuldades em fazer perceber [à sociedade] que os cuidadores têm falta de apoios [financeiros] e de medidas de apoio, que possam, de alguma forma, alterar o dia-a-dia. As medidas que estão a chegar não fazem grande diferença.

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“Temos cuidadores com acesso a um subsídio de apoio, de valor muito baixo. Está nos 292,45 euros. Os valores médios são francamente baixos, para quem cuida”, afirma Liliana Gonçalves.

E o descanso do cuidador?

Falta a regulamentação relativa à portaria que prevê a diferenciação positiva para os cuidadores informais reconhecidos. Ou seja, que os cuidadores com o estatuto reconhecido sejam abrangidos por um valor mais baixo a pagar pela assistência à pessoa cuidada, enquanto o cuidador descansa. Há um vazio legal, pelo que nenhum cuidador está a beneficiar da medida.

Não há cuidados domiciliários para esse tipo de descanso?

Conhecemos alguns projetos que o estão a fazer. São municípios que promovem, através de voluntários ou de profissionais, o descanso ao cuidador. Mas, como está escrita a lei, não percebemos como vai ser feito, quem o irá fazer. Os projetos são feitos por voluntários ou por profissionais pagos pelos municípios. A Câmara de Almada tem um conjunto de profissionais para cuidadores sem posses. Assegura o pagamento desses profissionais para o descanso do cuidador. Há projetos com limite de horas. O de Almada não tem limite de horas semanais. Há outros que colocam um patamar de quatro horas. Alguns são pagos à hora pelos cuidadores. Depois há projetos em que os municípios não cobram, é gratuito.

O estatuto prevê um certo número de dias de férias, ou de descanso, por ano?

Não, isso é uma reivindicação da associação. São 58 dias, anualmente. Consideramos o cuidar como um trabalho. Portanto, é como se a pessoa tivesse direito a férias, e mais os dias para o descanso do cuidador.

A formação e o apoio psicológico para o cuidador eram problemas identificados. Houve melhorias?

O apoio psicológico não está a funcionar. Já questionámos sobre quem vai fazer este apoio, se são os psicólogos do Serviço Nacional de Saúde, se das IPSS (instituições particulares de solidariedade social], se são profissionais de psicologia dos municípios... a questão não está clarificada. Relativamente à formação, já há cuidadores com um profissional da área da saúde e da área social a acompanhá-los, pelo que capacitação no domicílio poderá estar a acontecer. Mas também há escassez de informação sobre como irá ser feita, se não for no domicílio. Os cuidadores não conseguem, muitas vezes, deixar a pessoa cuidada em casa para irem fazer estas ações.

Há outros aspetos por regulamentar ou que seja necessário aperfeiçoar?

A carreira contributiva dos cuidadores informais preocupa-nos muito. As pessoas com o estatuto pagam um seguro social voluntário, mas nem todas conseguem fazer descontos todos os meses e, portanto, vai haver muitos cuidadores que não vão ter carreira contributiva desta forma. Além daqueles que, por não terem o estatuto, não têm estas contribuições. Também temos cuidadores idosos a cuidar de outros idosos, que ficaram fora da medida do subsídio de apoio.

Porque têm reforma.

Têm a reforma, mas também temos reformas tão baixas, não é? Poderia, eventualmente, pensar-se na atribuição do apoio por escalões... Como o estatuto está, além de chegar a um número muito reduzido de pessoas, comparado com o universo que poderá existir, vamos ter sempre cuidadores no limiar da pobreza. A secretária de Estado da Inclusão não gosta que abordemos esta questão, mas é verdade. Porque só quem tem muito baixos rendimentos vai ter acesso às medidas de apoio financeiro. E o apoio financeiro é tão baixo que não ajuda as pessoas a terem dignidade no cuidar.

Como se resolveria a questão da carreira contributiva?

Muitas pessoas estão a cuidar há muitos anos e nunca vão conseguir fazer descontos. Pensamos que só se vai conseguir ter, digna e justamente, uma carreira contributiva para os cuidadores, se forem considerados dez anos antes [de contribuições], e se o seguro social voluntário for assegurado pelo próprio Estado, além do subsídio de apoio que a pessoa receberia.

Os contactos com a Segurança Social são difíceis...

Pelo menos, na linha telefónica, haverá essa dificuldade, porque as pessoas telefonam para a Segurança Social e, como não conseguem chegar ao contacto, ligam para a nossa linha de apoio. Presencialmente, que nós percebamos, haverá menos dificuldade, porque pode ser agendado. Se estas marcações demoram, não tenho informação

Recebem queixas sobre a qualidade da informação?

Acontece com alguma frequência a pessoa dizer que, na Segurança Social, não lhe foi explicado aquilo que a colega [da linha de apoio da ANCI] está a transmitir. Eventualmente, é necessário continuar a haver formação, para que os técnicos prestem o mesmo nível de informação às pessoas e forneçam o mesmo entendimento da lei.

Um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública revela que 48% dos cuidadores consideram mau ou muito mau o acesso a informação. Como se altera a situação? Maior divulgação, apoio na gestão do processo...?

Acho que são as duas coisas. O pedido do estatuto podia ser feito não apenas na Segurança Social. Devia haver técnicos capacitados, quer na área da saúde, quer na área social, que ajudassem as pessoas a preencher o requerimento. O próprio requerimento podia ser simplificado. Numa primeira fase, a pessoa pedia apenas para aceder ao estatuto, para ser reconhecido. Só depois é que teria o apoio de uma equipa técnica para ajudar a instruir o processo. Penso que simplificaria.

As alterações ao Código do Trabalho bastam? 

Participámos numa audição, na qual manifestámos preocupação com a licença para cuidados. É preciso um pedido à entidade com dez dias de antecedência, e isso não responde aos imprevistos. Depois, estas licenças implicam perdas de remuneração, o que é sempre complicado para os cuidadores. Apesar de bem-vindas, as medidas não dão resposta àquilo de que os cuidadores precisam. A flexibilidade dos horários e de poderem trabalhar a tempo parcial, assim como a proteção legal no despedimento, são bem-vindas. Mas, ao nível das licenças e da perda da remuneração, pensávamos que ia haver outro tipo de abordagem. Continuaremos a fazer pressão para que seja alterado. O período deveria ser remunerado, sempre que houvesse justificação. Uma doença da pessoa cuidada, faltas para acompanhar em consultas ou outras situações que impeçam o cuidador [de trabalhar].

Como explica a resistência do Governo a fazer passar algumas reivindicações?

Falta vontade política para haver apoios ao cuidador informal. Pretende-se também que continue a manter-se uma certa invisibilidade dos cuidadores, porque, se formos apoiar todos aqueles que cuidam, temos de aumentar o custo anual do Governo. É um trabalho invisível, não remunerado, e que dá suporte aos sistemas de saúde. Se tivéssemos de começar a pagar e a dar apoios, teríamos de aumentar a comparticipação às famílias. Mas o sistema está montado ao contrário. São as famílias que asseguram uma grande fatia de cuidados em Portugal. Porque, se não forem os familiares a cuidar, não há respostas sociais em número suficiente. A criação do estatuto com regras e critérios tão apertados é apenas uma forma de, aparentemente, haver uma atenção para quem cuida, mas que, de facto, depois não existe.

Se mandasse, o que é que mudava já?

Abolia a condição de recursos para acesso ao estatuto. Os critérios de admissão da pessoa cuidada, penso que podia ser por justificação médica, e avaliava-se a pessoa a posteriori. Portanto, não haver necessidade de um complemento de dependência e alargar-se o subsídio de apoio a todos os cuidadores. Penso que era crucial. E apoio psicológico. Há muitos cuidadores que nos dizem que querem um estatuto para terem apoio psicológico, não para terem o subsídio de apoio. Neste momento, essas pessoas não têm apoio.

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