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As melhores francesinhas do Porto por Ricardo Dias Felner

De todas as provas que o crítico Ricardo Dias Felner já fez para esta rubrica, esta foi a mais esmagadora. Fisicamente. Psicologicamente. E emocionalmente.

  • Editor
  • Ricardo Dias Felner
27 maio 2024
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  • Ricardo Dias Felner
Francesinha num prato

Ricardo Dias Felner

Assim que me meti no comboio de Lisboa para o Porto, fiz duas coisas. A primeira foi mandar uma mensagem ao meu médico: "Vou comer sete francesinhas em três dias. O que devo tomar?" A segunda tarefa foi pedir recomendações: já tinha uma lista de francesinhas que queria provar, outras que queria repetir, mas precisava de assistência. 

Antes de chegar a Leiria, coloquei uma story no Instagram, a perguntar aos meus seguidores qual era a sua francesinha favorita no Porto. As reações, de entre 13 mil seguidores da minha conta, foram avassaladoras. Quando cheguei a Campanhã, tinha dezenas de respostas, e muitas mensagens – quase todas de portuenses. Entre as sugestões mais repetidas, havia desde os campeões do costume – como as francesinhas do Santiago ou d'O Afonso –, até algumas periféricas ou de que nunca tinha ouvido falar, como a do Café Rio de Janeiro ou a da Nelma. 

Tive de fazer escolhas. Seria impossível experimentar todas. Fechei a lista inicial nas que se repetiram mais vezes, juntando-lhe contendores a que reconhecia qualidade ou sobre os quais tinha informações de pessoas conhecedoras do Porto. Estão no último grupo as francesinhas do Francesinha Café, que viria a ser a vencedora absoluta; do Gazela, uma criação recente, numa casa conhecida por ter inventado o cachorrinho do Porto; e a francesinha no forno da Yuko Tavern, que empurrou para fora da seleção a gémea do Brasão, outra candidata de qualidade, filha dos mesmos pais.

A francesinha a quem sabe

"Isto é um assunto muito sério", alertou-me a jornalista Teresa Castro Viana, mal nos sentámos no Bufete Fase. É a pessoa no mundo que mais escreveu sobre francesinhas. Já entrevistou muitos dos grandes mestres do ofício, e já provou quase todas. 

Na sua lista de preferências entram algumas que não estão aqui, como a Cervejaria Europa. Por uma razão: fica em Rio Tinto, e a amostra só incluiu francesinhas do Porto. De fora, ficaram ainda algumas que, sendo relevantes, não mereceram tantos votos de confiança. Foi o caso da francesinha da Regaleira, casa recentemente remodelada, onde tudo terá começado. Foi aqui que Daniel David Silva, em 1952, inventou uma sandes inspirada no croque-monsieur e – reza a história contada pela casa –, nas mulheres francesas, que, segundo ele, "eram mulheres picantes, mais atrevidas e vistosas do que as portuguesas da época".

Na verdade, o picante foi só uma das variações introduzidas ao croque-monsieur. O croque-monsieur parece-se com uma tosta-mista encimada com queijo gratinado. A francesinha, por sua vez, é um monstro de carnes e camadas e ingredientes em geral, coberto por um molho intenso.

Fundir ou gratinar

Por detrás da aparência de fast food, estão vários detalhes que marcam territórios (há a francesinha de Matosinhos, de Gaia, de Braga…) e geram debates acesos. Um deles é a forma como o queijo é tratado. "Eu prefiro as francesinhas com o queijo fundido. Não sou fã das gratinadas", diz-me Teresa Castro Viana. 

As francesinhas gratinadas, como as da Yuko ou as da Locanda, popularizaram-se nos últimos anos e são distintas. O queijo, de tipo flamengo, é colocado no topo da sandes, e vai ao forno. Já no caso das francesinhas clássicas, a sandes é montada e depois segue para uma tostadeira. Nesta versão, o queijo é colocado a frio só no final, e fundido com o molho quente derramado por cima, mesmo antes de a francesinha ser servida. 

Na prova na Yuko, foi muito evidente a mudança de perfil da francesinha gratinada. O processo de gratinar acentua o sabor do queijo – fazendo-me lembrar aqueles rebordos tostados das tostas-mistas – e sobrepõe-se a outros ingredientes. A Yuko mereceu, todavia, estar presente entre os sete finalistas, por causa do molho, equilibrado e guloso, e pela montagem e qualidade dos ingredientes. 

Camadas e mais camadas

Fora o queijo, as francesinhas fazem-se de muitos pormenores. O pão mais usual é o de forma. Mas, dentro dos pães de forma, há diferenças. Uma das razões para preferir a francesinha do Francesinha Café foi a fatia cortada finamente. Na maioria das sandes, não quero comer muito pão ou, pelo menos, não quero que o pão torne a mastigação fastidiosa. Com a francesinha, não é diferente.

Nalguns casos, como no Bufete Fase, o pão é torrado previamente e depois barrado com margarina. O homem que faz este procedimento, desde sempre, é o dono, o Sr. José, um exemplo de dedicação e cuidado. Para mim, o pão do Bufete faz muito sentido, mas a Teresa achou que estava demasiado torrado, fugindo à norma portuense. 

No campo oposto ao do Francesinha Café, está o pão do Santiago. Como diz Nuno Lopes, repórter de imagem do Porto, que tem catalogadas todas as francesinhas relevantes da cidade, a francesinha do Santiago é "talvez a mais consensual". Não sou fã do seu pão, por ser demasiado grosso e vir tostado de forma apressada, mas reconheço que não há melhor para estômagos ávidos de hidratos e de proteína. 

Resta falar do único exemplar finalista que usa pão molete ou bijou, aquilo que, no Centro e no Sul, se aproxima da carcaça ou do papo-seco: a francesinha do Gazela. Não se trata de um desvio à criação original. Na primeira versão inventada na Regaleira, usava-se o bijou – e ainda hoje a casa o usa. Mas a maioria das francesinhas do Porto, hoje em dia, prefere usar pão de forma. A francesinha do Gazela tem a particularidade de vir muito bem montada. O formato do pão ajuda, fechando-se sobre o recheio, quando vai à prensa. O único senão é que a côdea, funcionando como uma capa, torna a deglutição mais pesada, comparativamente com o uso de um pão de forma leve.

As carnes para a francesinha

Continuando a descer nas camadas, chegamos às carnes e aos enchidos. Aqui, começa-se por avaliar o bife. O bife define-se pelo corte. Pode ser do lombo, como na Yuko; ou pode ser da alcatra, como no Lado B; ou pode até ser da rabada, como no Bufete. Depois, há a dimensão: pode ser fininho, como no Francesinha Café; ou mais grosso e transbordante, como no Santiago.

Um ponto crítico é também o ponto em que o bife é cozinhado. Quase todos os bifes vinham demasiado passados para o meu gosto, exceção feita ao do Gazela, impecável e suculento, com um ligeiro tom rosado no centro.

Fora o bife, há quem use carne assada. A Cufra é um dos exemplos mais apreciados que fazem uso da carne assada – algo que surgia e ainda surge na receita fundadora da Regaleira. Por sua vez, o Bufete Fase junta as duas coisas: bife e carne assada, finíssima – mas retira-lhe uma camada canónica: mortadela.

A ausência não é considerada crítica, diz Teresa Castro Viana. Para a jornalista do Porto, especializada em gastronomia e autora da conta de Instagram Trufas de Cebolada, a charcutaria da francesinha só tem uma regra obrigatória: "A linguiça tem de ser do Leandro."

Quem é o Leandro?

O Leandro é quem dá nome à Salsicharia Leandro, com talho no Mercado do Bolhão. No Porto, toda a gente reconhece ao Talho do Leandro a qualidade dos enchidos de produção própria, sobretudo da linguiça e da salsicha fresca.

No que respeita à linguiça, pelo menos, julgo que todos os sete finalistas aqui representados se fornecem no Leandro. Os portuenses já estão tão habituados ao sabor que estranham quando ela não está presente.

Já o fiambre e a mortadela aparecem quase sempre em dueto, bem juntinhos, ou no topo da sandes, ou entremeados na carne e nos enchidos, ou na base. O fiambre é quase sempre de qualidade banal, e deve ser fatiado fino (quem quer fiambre banal grosso?), e pouco.

Quanto à mortadela, ninguém usará produto especial, à exceção do Francesinha Café, que importa produto acima da média, de Itália. De resto, há sítios que usam outro fumeiro, como paio ou chourição, cortados fininhos.

Molho da francesinha processado e tomatoso

Quanto ao molho, esqueçam-se os caldos artesanais, esqueçam-se o consommé e o bouillon de legumes. O molho da francesinha é uma mistura de outros molhos processados, de bebidas alcoólicas e de caldos sintetizados.

É verdade que haverá quem faça um estrugido com cebola e alho, e também quem coza ossos para o caldo e utilize ervas frescas e especiarias, da salsa ao louro e às pimentas. Mas mesmo os mais zelosos não dispensam os produtos industriais e processados.

A prova de que é assim é que a maioria das francesinhas feitas por chefs, com melhores produtos e técnicas sofisticadas, acabam quase sempre por parecer estranhas, por parecer outra coisa. As misturas de ingredientes processados são muitas, mas, entre os que podem entrar no molho da francesinha, estão a mostarda, o ketchup, as sopas de pacote (rabo de boi, cebola) e os cubinhos de caldos de carne. Acrescem as bebidas alcoólicas, como a cerveja, o brandy e o vinho branco. E também é usual acrescentar-se margarina e farinha Maizena, para dar espessura ao molho. O que nunca pode faltar é o tomate, quase sempre na forma processada: em polpa ou pelado. Ele dá o tom ao molho, sendo certo que a cor deste pode ir de um laranja mais claro (como o do Bufete Fase) a um vermelho mais escuro, como o dos molhos do Francesinha Café e da Yuko, porventura os meus dois favoritos.

A dura tarefa da prova

Acabei por abrir o leque de finalistas não a três, mas a sete concorrentes. Isso obrigou a três dias de provas e a que, de forma inédita, usasse meios pontos na avaliação, por forma a conseguir distinguir melhor as francesinhas.

No final, destacou-se o Francesinha Café, por ter bons ingredientes e por ser bem montada, saborosa e equilibrada, com um molho guloso e atomatado, e acidez e picância notórias. De resto, é também a mais maneirinha de todas.

Na avaliação apenas da francesinha, o Bufete Fase bateu-se com o Francesinha Café, com o valor acrescentado de custar menos 3,50 euros. O problema do Bufete foram as batatas fritas, as piores de todas em análise, do tipo congelado-industrial. Em matéria de batatas fritas, receberam pontos extra, por outro lado, os palitos do Gazela e os da Yuko, impecavelmente secos e fritos em óleo de qualidade.

Voltando a Teresa Castro Viana, as batatas "não são algo secundário" para um portuense, quando se trata de francesinhas. Quase toda a gente que se sentou à minha volta, nas provas, acompanhava a francesinha com batatas fritas.

Por fim, há que falar dos critérios de avaliação da "montagem" e da "harmonia". As francesinhas maiores, com mais elementos e mal prensadas, tendem a desmanchar-se muito. Esse fator pesou na avaliação, por exemplo, da francesinha do Santiago. É uma boa francesinha (belíssimo molho), abundante em tudo, mas, assim que cortei o primeiro pedaço, desmanchou-se.

Na harmonia, entra o equilíbrio do prato no conjunto, mas também aquilo que será o cânone da francesinha atual ou opções do meu gosto.

O Lado B, por exemplo, ganhou pontos por ser aquilo que a maioria das pessoas espera de uma francesinha – sem truques, sem invenções, entregando muita e boa proteína, devidamente encharcada em molhanga abundante, e bem quente.

Pelo contrário, perderam pontos outras sandes, por questões de gosto pessoal. Exemplos: tal como Teresa Castro Viana, prefiro as francesinhas de queijo fundido às gratinadas (como a da Yuko); e prefiro o pão de forma ao pão bijou (como o do Gazela e da Regaleira).

No fim de contas, é quase tudo uma questão de opinião pessoal. E as opiniões são tantas quantas as francesinhas do Porto.

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