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"A sociedade não sabe lidar com vítimas de grandes burlas, sobretudo quando as denunciam"

Ayleen Charlotte, uma das vítimas do chamado “impostor do Tinder”, continua a lutar pela criminalização da fraude romântica que a deixou submersa em dívidas. Até lá, denuncia a forma como o burlão atuava e tenta apoiar outras vítimas. Tema em debate também no podcast POD Pensar.

14 fevereiro 2023
Ayleen Charlotte

João Ribeiro

A dor do engano, a perda do emprego, o luto de um namorado que não existiu e a falta de apoio das autoridades para sobreviver às dívidas e recompor a vida. Ayleen Charlotte contou, em entrevista à DECO PROTESTE, a sua relação de 14 meses com o "impostor do Tinder", como foi enganada e descobriu a verdade, e o que está a fazer para pôr o burlão atrás das grades.

O tema está também em debate no podcast POD Pensar. Aurélio Gomes lança a discussão sobre este que, para muitos, não será ainda, porventura, um tema de crime. À conversa com ele estão Dalila Araújo, vice-presidente do Observatório da Criminalidade Organizada e Terrorismo, e Ricardo Estrela, gestor da Linha Internet Segura e da Unidade de Cibercrime da Associação de Apoio à Vítima (APAV).

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"Documentário da Netflix deu a conhecer a cara do impostor"

A sua história tornou‑se pública quando a Netflix emitiu o documentário. Porque decidiu contar o que lhe aconteceu?

Primeiro, quero ajudar pessoas que estiveram na mesma situação e motivá‑las a recuperarem o controlo das suas vidas. Segundo, quero muito que a Justiça e as autoridades europeias trabalhem verdadeiramente neste caso. E, em terceiro lugar, que a cara do impostor seja de todos conhecida, porque ele merece estar atrás das grades, em vez de estar em liberdade.

Qual foi a reação do público ao documentário?

As reações foram diversas. Tive muito más reações, claro. Mas também tive reações incríveis de pessoas do mundo inteiro, que me enviaram mensagens a dizer que as motivei, que fiz com que lutassem. Portanto, valeu muito a pena.

A sua relação com o Simon começa no Tinder. Do primeiro contacto ao primeiro encontro, quanto tempo passou?

Três ou quatro semanas, porque eu estava em Amesterdão quando nos conhecemos no Tinder. Encontrámo-nos pela primeira vez, em Londres, quando lá estive em trabalho, em dezembro de 2017.

Nunca sentiu que o Simon tivesse tentado aferir a sua situação financeira?

Não, na verdade, não. Partilhávamos algumas coisas, como “tenho uma casa” ou “tenho um carro”, porque é o tipo de informação que se partilha quando conhecemos alguém ou se está apaixonado. Mas não era percetível que o alvo fosse o meu dinheiro.

E agora, quando olha para trás, vê algum sinal de alerta que lhe tenha escapado na altura?

Sim, absolutamente. Por exemplo, sempre que me pedia dinheiro, pressionava‑me, pressionava‑me. Nem me deixava pensar. O normal seria dar‑me algum tempo para pensar, mas não dava. Só me apercebi disso mais tarde. E o tipo de pressão – “se não me mandas o dinheiro, mato‑me; a minha vida já não vale nada, se não me ajudares” – criava a sensação de que a culpa era minha. Ele virou o jogo, e essa era uma grande bandeira vermelha, que só vi tarde demais, infelizmente.

 
"Sempre que me pedia dinheiro, pressionava-me. Nem me deixava pensar. Só me apercebi disso mais tarde."

A forma fraudulenta como o Simon atuava assemelha-se ao chamado esquema Ponzi, não é?

Sim. Se me é permitido falar das duas raparigas, a Cecilie e a Pernilla, que também participam no documentário The Tinder Swindler [O impostor do Tinder, da Netflix] é mais fácil exemplificar. O Simon cortejava-me com o dinheiro que a Cecilie lhe entregava, e cativava a Pernilla usando o meu dinheiro. Ou seja, com o meu dinheiro, ele seduzia e dava presentes a outras raparigas, e assim consecutivamente.

No total, esteve com o Simon durante 14 meses. Correto?

Sim. Talvez um pouco mais, mas já nem era namorar, porque, nos últimos meses, eu já estava a vingar-me um pouco.

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“Ainda não há um sistema internacional de combate a estas fraudes”

Quando descobriu a verdade, resolveu manter o namoro. Porquê?

A Pernilla e a Cecilie [outras vítimas do impostor] divulgaram as suas histórias num jornal norueguês. Li o artigo poucos minutos depois de o Simon me deixar no aeroporto de Praga. E foi ao ler esse artigo que percebi que estava a namorar com um impostor. Na altura, fiquei sem saber o que fazer. Mas depois comecei a pensar numa forma de recuperar algum dinheiro e de me vingar. Ele só usava roupa extremamente cara. E eu, como tinha trabalhado em moda, sabia que era tudo da última estação. Então disse‑lhe: “Como precisas do dinheiro e de passar despercebido, dá‑me a tua roupa e eu vendo‑a por ti.”

Quanto ganhou com essas vendas?

Não sei. Nessa altura, só queria manter a cabeça à tona da água porque estava a afogar-me em dívidas. Acho que estava em modo de combate. Eu só queria lutar.

Quanto tempo esperou para fazer queixa às autoridades?

Uma semana e meia depois de ter lido o artigo. Fui à esquadra da polícia perto da minha cidade e eles ficaram em choque, só olhavam para mim e não tinham ideia absolutamente nenhuma de como lidar com a minha história. Nem sabiam como criar um relatório policial sobre a minha história. Então contactaram o procurador do Ministério Público daquela área e acabaram por me dizer que não me podiam ajudar. Ainda fui a outra esquadra perto de Amesterdão, mas também não puderam ajudar-me. Só quando contactei a polícia financeira é que consegui registar a queixa.

Percebeu se o caso foi novidade para eles?

Já tinham o caso de dois bancos, mas sabiam que era maior que isso.

Estamos a falar de uma fraude cometida em diversos países. Tem havido cooperação internacional entre as diferentes autoridades?

Não. Há queixas dele na Suécia, na Noruega, no Reino Unido e na Alemanha, mas nada foi concertado. Mesmo depois do documentário, não há ainda um sistema internacional de combate a este tipo de fraudes.

E tem algum contacto do Governo holandês para a ajudar neste caso?

Não, infelizmente não. Há quatro anos que estou a tentar, juntamente com o meu advogado.

 
Ayleen Charlotte contou à DECO PROTESTE como o "impostor do Tinder" conseguiu defraudar o sistema.

Pediu vários créditos bancários para ajudar o Simon. Não foi feita uma avaliação de risco por parte das instituições financeiras?

Sim, mas o Simon também sabia como defraudar o sistema. Ele sabia que se pedíssemos dois empréstimos em simultâneo, nenhuma das entidades saberia do pedido na outra, pois os contratos de crédito podem ser reportados ao fim de duas semanas.

Mas o Simon também pediu os seus cartões de crédito emprestados…

Sim, mas não funcionam como os empréstimos, porque na Holanda os cartões de crédito estão associados à conta bancária. Ou seja, tudo o que ele gastou, tive de pagar logo no mês seguinte.

Quando teve noção do quão endividada estava?

Quando li o artigo. Já tinha dado tanto dinheiro ao Simon, quer das minhas poupanças, quer através dos cartões de crédito e dos empréstimos pessoais que contraí em meu nome, que vi logo que teria de ser eu a pagar tudo. Caso contrário, ficaria em grandes apuros.

Recebeu aconselhamento ou apoio para pagar os créditos?

Não, infelizmente, não. Contactei todas as organizações nos Países Baixos que pensei que pudessem ajudar-me, mas, como tenho casa própria e tinha um salário razoável, não era elegível a qualquer apoio, por mais endividada que estivesse. Estou a lidar sozinha com tudo.

Sente que as autoridades lhe falharam?

Sim, sim. Porque é possível ter um emprego razoável, ser proprietário de uma casa e ainda assim cair num fosso destes. E ninguém consegue ajudar. Se eu ganhasse menos de 10 mil euros por ano, talvez conseguisse um plano de pagamentos. Mas como tenho uma casa, não tive direito. Aliás, um dos bancos a quem pedi ajuda chegou a sugerir-me que vendesse a casa.

A Ayleen acaba por ajudar as autoridades a apanharem o Simon. Foi um alívio?

Foi uma sensação incrível. Foi ele mesmo a contactar-me: enviou-me uma mensagem que dizia “fui preso”. E lembro-me de que estava sentada no meu sofá, olhei para o telefone e dei um pulo. Abri uma garrafa de vinho e liguei aos meus amigos e aos meus pais para celebrar.

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